Em Maio de 1977 foi publicado o primeiro número da revista Poder Local.

Afirmando-se como a primeira publicação dedicada às questões da administração autárquica e do Poder Local, é hoje, decorridos quarenta e cinco anos, a única revista que continua a abordar de forma regular a problemática da administração democrática.

No seu primeiro número afirmava-se «nascida nas novas condições criadas pela Revolução de Abril e pela entrada em vigor da Constituição». E propunha-se «apoiar a construção do novo aparelho de Estado local, através do debate dos problemas e das soluções, da recolha e divulgação de experiências de gestão democrática, do estudo das condições concretas existentes em cada região, concelho ou freguesia».

Hoje os objectivos mantêm-se, continuando a Poder Local a assumir-se como revista de Abril, da afirmação da autonomia local e da defesa das garantias e direitos que são imperativos constitucionais.

Mantêm-se os objectivos mas evoluiu-se em meios. A partir de agora a Poder Local passa a estar disponível também em suporte digital, permitindo a todos o conhecimento do que foi produzido ao longo das suas 160 edições. E permitindo ainda quer a rápida edição, quer a actualização constante das matérias que ao Poder Local respeitem.

Revista para eleitos, técnicos e demais trabalhadores autárquicos, em luta pela autonomia e pela garantia de meios capazes de responder aos problemas que afectam as populações, a Poder Local será também um contributo indispensável para todos os que se dedicam ao estudo, à reflexão e ao conhecimento do que o poder local representa enquanto conquista de Abril e factor de progresso e desenvolvimento.

Revista que se pretende seja, igualmente e cada vez mais, a revista de todos os que querem contribuir para a resolução das carências que continuam a afectar, em muitos casos de forma agravada, as regiões, os concelhos e as freguesias do nosso País.

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 [Nota da edição: pela sua dimensão, o presente estudo é apresentado em quatro capítulos]

 

I Capítulo  

 

1. Cidade, Urbanismo e Gestão Urbana

 

Cidade, urbanismo e gestão urbana, são três realidades objectivas que se enlaçam na definição de um resultado final, o desenho do território onde os homens se distribuem em sociedade e, em particular, como organizam o espaço físico onde coabitam e operam a maior parte das funções necessárias ao seu desenvolvimento integral. Todavia, a realização deste intento e as condições em que ele se concretiza são, sempre, a expressão material de visões do mundo, pressupostos conceptuais e opções ideológicas bem determinadas, o que irá configurar em definitivo o resultado atrás referido.

O urbanismo é a arte de organizar o «habitat» colectivo dos homens quando estes vivem em comunidade, procurando promover o seu bem estar comum e o seu melhor relacionamento físico, social, económico e cultural, num espaço e num tempo determinados. Fazendo interagir os modos de habitar, de trabalhar e de se mover dentro desse espaço de forma a conseguir uma resultante positiva na relação custo-benefício estabelecida entre valores éticos e de cidadania, de conforto e de bem-estar, de felicidade e de realização dos homens, o urbanismo é um saber que partilha terreno entre as ciências do homem e as ciências da natureza.

A gestão urbana é a figura particular que o urbanismo assume quando actua sobre o território, optando por este ou aquele desenho da cidade consoante esta ou aquela opção ideológica que convocou ou irá convocar. Projectando-se dentro dos limites que a administração do território lhes atribui ou que o tempo se encarregou de definir, urbanismo e gestão urbana actuam para e no espaço intersticial entre edificações e áreas «verdes» e «húmidas» e, regulam todas as funções nele implantadas e que são necessárias à vida dos seus usuários, habitantes ou não, do residir ao trabalhar, da procura de bens de consumo ou à apropriação e difusão de cultura, do ensino à saúde, do lazer ao desporto.

Compreendemos, assim, a importância destas disciplinas no contexto do tratamento do meio físico, como importantes são as interacções de proximidade entre todos os agentes que nele coexistem, residentes ou migrantes, e nele convivem na procura de uma lei específica que lhes garanta valores de bem-estar e de felicidade em cada presente e em todos os futuros. E estes conceitos são aplicáveis hoje como o foram ontem, lá onde os homens tiveram necessidade de residir e de trabalhar em comunidades de maiores ou menores dimensões, da aldeia à vila, da cidade de província à capital de país, da metrópole à área metropolitana.

Tal necessidade emana directamente das condições materiais da sociedade e da sua capacidade de elaborar essas condições em proveito da melhoria do seu quotidiano e da realização do seu projecto colectivo de futuro, um e outro objectos da sua mundividência social, económica, cultural e política.

 

2. O papel da Ideologia

 

«O espaço é político e ideológico e uma representação literalmente povoada da ideologia. Existe uma ideologia do espaço. Porquê?
 Porque este espaço, que parece homogéneo, que parece dado de um bloco na sua objectividade, na sua forma pura, tal como o constatamos, é um produto social. (…) E isto devido à existência de grupos particulares que se apropriam do espaço para administrá-lo e explorá-lo.»

Robert Auzelle, «Ideologia de classe e morfologia espacial»,1971

 

De acordo com uma visão do mundo que perspectiva a estrutura das sociedades como entidades colectivas divididas em classes, podemos dizer que o urbanismo e a gestão urbana, enquanto formas de actuar sobre o território edificado ou a edificar, remontam ao aparecimento do poder como expressão socialmente instituída, seja ela individual ou colectiva, por apropriação consentida ou por mandato de uma classe.

Esta formulação radica no estudo do comportamento das comunidades humanas a partir da sua sedentarização, ou seja, com a descoberta da agricultura, e atravessa a história desde as mais antigas civilizações de que há registo, até aos tempos actuais. O chefe da tribo ou o «Xamã» de um povoado da Polinésia, da África Equatorial ou da Amazónia, tinham ou têm as suas habitações no centro do espaço que esse povoado ocupa. Ali está o poder e o povoado dispõe-se em torno desse símbolo. Tal poder é político, guerreiro ou religioso, e a população assume-o porque o concedeu ou porque o aceitou.

A génese dos modelos das sociedades é fundada sobre as suas necessidades materiais desde a tomada de consciência do papel vital destas enquanto motor de evolução e de progresso, e irá aprofundar-se até à instrumentalização dos meios de produção como acto regulador da vida comunitária. Este acto engendrará padrões de organização das formas de habitar, mais ou menos sofisticados consoante o grau de desenvolvimento económico e cultural dessas sociedades. Com efeito, se o desenvolvimento social dos homens em comunidade é a expressão da sua cultura, e esta traduz o estado da evolução das suas forças produtivas, ele indicia, consequentemente, a sua capacidade de elaborar, de forma mais ou menos racional e abstracta, as suas regras de vida, a sua ética, a sua filosofia, as suas ciências, a sua tecnologia e a sua maneira de habitar.

 

2.1- Poder e Gestão Urbana

Num passado remoto, onde o poder não teve uma expressão claramente assumida e com um peso significativo no seio das comunidades, em qualquer um dos pontos de vista, social, cultural, politico, religioso ou militar; onde não havia propriedade privada e o solo era sem donos; onde não existiam necessidades de armazenamento de colheitas ou cercas para gado, não existia planeamento urbano. As edificações não obedeciam a quaisquer regras para se implantarem, os arruamentos e os largos, quando os havia, dispunham-se sem hierarquização, surgindo as edificações (tendas, cabanas ou construções em materiais inertes) ao sabor de factores aleatórios, apenas ditados por conveniências óbvias como a proximidade de água, de terrenos aptos para cultivo, da configuração do relevo, da melhor insolação ou de medidas elementares de defesa e auto protecção contra ataques de animais ou de homens vindos do exterior.

Pelo contrário, quando passou a haver apropriação do solo nascida da incipiente cadeia de produção; quando o desenvolvimento da agricultura criou excedentes e estes deixaram de ser distribuídos pela comunidade na razão de «a cada um segundo as suas necessidades» e se entrou na fase de acumulação de bens; quando a organização do trabalho conheceu uma nova fase em que alguns membros da comunidade passaram a prestar serviços a outros de quem ficaram dependentes; quando, pois, se abandonou a economia de troca directa de bens de consumo em favor da venda de bens agora já acumulados, estavam criadas as condições para a instauração de um poder tutelar, do poder de um ou mais membros da comunidade sobre outros membros ou mesmo sobre todo o colectivo comunitário

Esta fase corresponde assim ao aparecimento da propriedade privada da terra e dos meios de produção, e da estruturação da sociedade em classes divididas por interesses diferentes entre possuidores e desprovidos. O poder agora reconfigurado, passou a atribuir direitos, a impor deveres, a gerar novas necessidades e dependências entre os homens. Um novo fenómeno surge, assim, na história das sociedades, criadas como estão as condições para a disputa emergente desta diferença de interesses irremediavelmente antagónicos. É a «luta de classes» que, na marcha do homem, tenderá a agudizar-se à medida que aquelas diferenças de interesses se radicalizarem.

E a gestão urbana conheceu, então, uma fase embrionária de configuração, em que o povoamento teve de se reformular e de atender aos novos valores que se impunham pelas novas necessidades materiais e organização do trabalho.

Assim, o detentor de mais terras e de mais animais, passou a assumir uma nova forma de poder e, no povoado, a sua residência traduzia já, em dimensão e em localização, esse poder. Surgiram currais e armazéns de víveres para usos de consumo ou de troca, oficinas de artesãos que fabricavam os instrumentos do trabalho e os objectos de uso doméstico. Desta forma se foi impondo a necessidade de rever a distribuição destas novas funções na comunidade e, consequentemente, no desenho do povoado. Eis criado o berço do urbanismo e da gestão urbana primitivos.

E esta é uma constante na marcha da história. Como vimos, e achamos por bem repeti-lo, todas as expressões da organização urbana, não são mais do que o reflexo do grau de desenvolvimento material das sociedades, quer dizer, da sua cultura, tomada esta como instrumento de identificação de uma forma específica das forças produtivas. A capacidade de edificar uma ciência, uma técnica, uma estrutura de ensino ou uma organização de saúde pública, postos ao serviço de toda a comunidade de forma a responder às suas exigências e expectativas de um presente e de um futuro de realização pessoal e colectiva, é disso um testemunho.

Como o é, também, a capacidade de desenhar um traçado urbano regulador em função do tipo de necessidades de uma comunidade, da topografia do terreno em que esta se irá implantar, das suas condicionantes climáticas, das actividades que desenvolve, das suas perspectivas de crescimento, com as tecnologias mais adequadas, tudo isto pensado de forma coordenada e integrada num plano coeso e coerente. Ora tal só é possível como emanação ou como um correlato de uma outra capacidade, a de formular conceitos racionais mais ou menos abstractos e sofisticados, ou de criar máquinas e ferramentas para a sua agricultura, para a sua indústria ou para apetrechar a sua investigação e a sua tecnologia, por elementares que estas sejam.

Carlos Roxo