Os suplementos económicos andam loucos com aquilo a que chamam o investimento no imobiliário: “2000 milhões de euros expectáveis para 2015”, titulava o Expresso de 20 de Junho.

De acordo com informações de alguns conhecidos consultores imobiliários, terão sido aplicados em Portugal, entre Janeiro e Maio do corrente ano, cerca de 800 milhões de euros em ativos imobiliários, dominantemente do terciário – edifícios de escritórios, hotéis e centros comerciais, pois que a habitação não tem tido um papel relevante neste processo.

Ainda segundo as mesmas fontes, nesse período, terão “mudado de mãos” *vinte imóveis de escritórios (9% do total), centros comerciais (67% do total, como por exemplo, o Fórum Almada, o Fórum Montijo, o Alverca Park entre outros) e alguns hotéis (15% do total). Aparece também a referência a alguns edifícios industriais (5% do total).

As origens destes investimentos são, respetivamente, os EUA (53,9%), a Espanha (22,4%), a Tailândia (14,8 %) e Portugal (7%).

Em torno deste verdadeiro “milagre”, em torno desta dinâmica de “investimento”, é absolutamente vital distinguir entre a essência e a aparência dos fenómenos económicos e financeiros, entre o seu aproveitamento instrumental pela propaganda da recuperação económica e a realidade objetiva.

Esta postura de propaganda em torno de uma recuperação milagrosa no imobiliário sucede à hecatombe porque o setor passou e passa, após quase duas décadas em que teve lugar a criação de uma enorme bolha imobiliária. Bolha essencialmente associada à componente habitação e que traduz uma das mais nefastas consequências da política de direita na esfera económica.

E não é uma postura completamente nova, dado que, pelo menos desde o início do ano passado, sejam consultores imobiliários, sejam associações empresariais ligadas ao setor, sejam jornalistas ditos económicos, descobrem que a crise no imobiliário já passou, face aos fortes sinais que começam a percecionar, pelo que têm de dar esta boa nova ao país.

Tentemos observar agora a realidade que está por detrás desta propaganda, pelo menos nos aspetos ou vertentes seguintes:

  •   O caráter do investimento;
  •   A origem e o destino dos capitais envolvidos;
  •   Os efeitos sobre o setor da construção de edifícios;
  •   Os efeitos sobre o setor do imobiliário e da economia em geral;
  •   A presença de capital estrangeiro no imobiliário.

 

Observemos pois cada um destes aspetos de per se.

Primeiro aspeto: Desde logo, o facto de que as aplicações financeiras em determinados tipos de imobiliário (contudo, para a natureza do fenómeno, ser irrelevante o tipo de imobiliário), estas mudanças de titularidade de ativos imobiliários, não correspondem a qualquer investimento, pois que, por regra, corresponderam exclusivamente à aquisição, dominantemente por estrangeiros (pelo menos 80%), de imóveis já preexistentes, independentemente da sua função económica e social. É o que costumamos designar por pseudo ou falso investimento.

Depois, porque mesmo que fosse um verdadeiro investimento, ele se está a destinar exatamente aquilo de que o país não precisa, ou seja, mais imobiliário a juntar ao brutal stock ocioso de centenas de milhares de frações destinadas a habitação.

Acresce o já excessivo peso das atividades terciárias, particularmente as de baixo valor acrescentado, no quadro do nosso perfil de especialização, nomeadamente o brutal excesso de área de grandes superfícies, a excessiva ocupação de edifícios por escritórios em áreas nobres da cidade de Lisboa sem partilha com habitação e a dominância do investimento em habitação de altos padrões.

Também de referir, que o vital processo de reabilitação, que em muitos domínios se sobrepõe com os fenómenos anteriores, continua, como adiante veremos, com enormes debilidades e hesitações.

O investimento de que Portugal dominantemente precisa deve ser dirigido a atividades produtivas e a infraestruturas.

 

Segundo aspeto: Não é crível que as verbas entradas no país no quadro das transações que estão a ter lugar, venham, depois destas, a dar entrada direta ou indireta na esfera produtiva ou mesmo na economia real, dado o tipo de atores envolvidos.

Ao contrário, é muito bem possível que parte destas verbas venham a sair do país sob a forma de lucros e dividendos exportados, ou até sob outras formas menos lícitas.

Também é expectável, embora sem obediência a nenhuma tendência geral, que muitos dos capitais investidos nestas operações tenha origens não legais.

 

Terceiro aspeto: Sendo aquela atividade da fileira do imobiliário que tem de longe o maior peso, iremos seguidamente e com algum detalhe, avaliar os efeitos do “milagre” sobre o setor de construção de edifícios.

Desde 2002, ano em que, no quadro do processo de enchimento da bolha imobiliária se atingiu o pico construtivo de 127 mil fogos, que a produção de fogos novos tem estado sempre em queda, pelo menos até final do ano passado (respetivamente 93 mil em 2003, 72 mil em 2004, 77 mil em 2005, 70 mil em 2006, 69 mil em 2007, 60 mil em 2008, 48 mil em 2009, 37 mil em 2010, 30 mil em 2011, 28 mil em 2012, 21 mil em 2013 e cerca de 10 mil em 2014).

Só neste período de 13 anos -2002/2014- foram construídos mais de 750 mil fogos, a acrescer ao excedente que já existia no princípio do período. Isto significa que a variação homóloga do índice de produção de construção de edifícios em cada ano, relativamente ao anterior, qualquer que seja o período considerado, se manteve sempre negativo, excetuando o ano de 2005.

Em 2014, foram concluídos 14 500 edifícios* (habitacionais e não habitacionais), dos quais cerca de 26% corresponderam a reabilitações. É de destacar que ao longo de todo o ano de 2014, ainda com continuação no 1º trimestre de 2015, e trimestre após trimestre, foi ocorrendo uma queda contínua no número de edifícios construídos, sendo a variação homóloga entre o 1.º trimestre de 2015 e o 1.º trimestre de 2 014 de menos 25,6 %.

Esta queda contínua verifica-se não só nas construções novas, como também na reabilitação, sendo até significativamente mais acentuada nesta última vertente (menos 31,9% de variação homóloga) bem em contracorrente com as necessidades do país.

Dos 14 500 edifícios construídos em 2014, 5 798 foram edifícios novos para habitação (40%) e 5 291 foram reabilitações (26%). Supondo que pelo menos 80% das reabilitações se destinaram a habitação, ou seja, 4 232 edifícios, o total de edifícios destinados a habitação em 2014 foi de cerca de 10 mil, ou seja, 69% do total de edifícios concluídos em 2014.

Constituindo a Área Metropolitana de Lisboa (AML), aquela região em que ocorre parte significativa das transações atrás referidas, e em que parece haver uma muito ligeira retoma do imobiliário, convirá portanto observá-la com mais detalhe. Na AML o número de edifícios construídos em 2014 foi de 1 186, ou seja, cerca de 8% do total nacional.

Também nesta região, a tendência sistemática de queda da produção durante 2014 se confirmou em todas as vertentes, tendo as variações homólogas 1.º trimestre de 2015 - 1.º trimestre de 2014, sido respetivamente de menos 31,4% para o total de edifícios, menos 30,8% para a reabilitação e 37,8% para a construção nova, valores de queda mais acentuados que os da média nacional, exceto na reabilitação que foi ligeiramente superior. O número de edifícios novos e reabilitados destinados a habitação foi de cerca de 890 unidades, ou seja, cerca de 8% do total nacional. Por outro lado, o Algarve foi a região do país com as quedas mais acentuadas e que prosseguiram em todas as vertentes, a saber, menos 45,2% no total, menos 37,9% na reabilitação e menos 51,9% na construção nova.

Em conclusão, a construção e reabilitação de edifícios, designadamente para habitação (9 430 fogos em 2014, o que constitui menos de 8% do pico da construção em 2002 e cerca de um terço da taxa de reposição anual em termos da normalidade de mercado, o que não é de todo o caso) além de não estar em recuperação, continua em clara queda há pelo menos cinco trimestres, mesmo para a tão necessariamente urgente área da reabilitação.

 

É pois esta a realidade que está por detrás do “milagre”.

Contudo, em termos de ciclos produtivos do imobiliário e do clima económico, designadamente na sua componente confiança (aqui para o investimento), convirá observar estes dados no seu enquadramento temporal. Assim, tendo em atenção o tempo que decorre entre a decisão da promoção imobiliária e a conclusão do edifício, que é de pelo menos cinco anos, os edifícios concluídos em 2014 resultaram de decisões de investimento tomadas nos primeiros anos do agudizar da crise (2007/2009).

Por outro lado, pode haver muitos casos de construções licenciadas que não avançaram, por receio dos promotores, devido ao clima que então já se vivia. De outra maneira, os edifícios e as frações concluídos em 2014, não terão muito a ver com o clima político, económico e social de 2014, mas sim com o clima de períodos anteriores, conforme já atrás observámos.

Corroborando a informação anterior de acordo com outra ventilação estatística, convirá observar o comportamento do índice de produção na construção (valor acrescentado a custo dos fatores em volume ao longo de um dado período de referência) a partir de 2013.

Em período mais recente, desde Abril de 2013 até Abril de 2015 (inclusive), as variações homólogas das médias móveis de três meses, apresentam-se sempre negativas, embora com uma queda menos acentuada – por exemplo, menos 18% em Abril de 2013 relativamente ao trimestre anterior, enquanto em Abril de 2015, tal valor era de menos 2%.

Corroborando esta tendência e tomando por base 100 o valor do índice bruto de 2010, ele oscilou entre Fevereiro de 2014 e Abril de 2015 entre 54,0 e 58,8, enquanto o índice ajustado para efeitos de calendário variou entre 50,3 e 57,8.

Todavia, bem ao contrário, o número de obras licenciadas já tem outro significado, situação em que estão muito mais próximas temporalmente da tomada de decisão do investimento e cujo processo burocrático até pode ser travado com alguma facilidade face ao comportamento da envolvente política, económica e financeira. Por isso, as obras licenciadas estão mais claramente relacionadas com o clima económico do período mais próximo temporalmente.

Por outro lado, também é importante cotejar o número de edifícios licenciados com o número de edifícios concluídos. Em princípio, se em cada ano o número de edifícios concluídos for superior ao número de edifícios licenciados, isto tem significado relevante acerca do clima económico (situação recessiva), sendo a contrária também verdadeira (situação de expansão).

E, face à estratégica necessidade de dinamizar a reabilitação, haveria todas as razões para que as licenças de construção destas estivessem a crescer, o que não ocorre minimamente.

Em 2014 foram licenciados 15 451 edifícios, dos quais 8 960 correspondentes a construções novas (cerca de 58%) e 4 051 a edifícios a reabilitar (cerca de 42% do total).

 

Desde já, duas notas acerca destes números.

A saber; a primeira, de que não há nenhuma dinamização do mercado (licenças de construção praticamente iguais aos edifícios concluídos), e a segunda, é a de que a construção nova continua a ser superior à reabilitação, quando deveria acontecer claramente o contrário, particularmente no que respeita à vertente habitação.

De forma mais fina, o número de edifícios licenciados tem-se mantido relativamente constante ao longo dos quatro trimestres de 2014 e a variação homóloga 1.º trimestre de 2015 -  1.º trimestre de 2014 foi irrelevante, a saber, menos 1,3%.

Contudo, se discriminarmos a análise, verifica-se uma profunda diferença entre a continuada queda da reabilitação urbana ao longo de 2014, com uma variação homóloga negativa de 15,9%, enquanto as licenças de novas construções se mantiveram razoavelmente constantes durante todos os trimestres e com uma variação homóloga positiva de 17,5%, entre os primeiros trimestres dos dois anos.

Já na AML se verifica, relativamente a licenças concedidas e em todos os segmentos, a tendência para uma ligeira recuperação ao longo de 2014 e com uma variação homóloga positiva de 33,9% apresentando também um valor positivo a reabilitação.

O que economicamente está por detrás da concessão das licenças de construção (sendo, como já vimos, importantes para analisar o clima económico), têm contudo uma influência económica pouco relevante, embora de elevado valor acrescentado, pois dinamiza ou dinamizou menos de 5% daquilo que serão os valores de transação dos edifícios e correspondendo, no essencial, a projetos.

 

Quarto aspeto: As únicas ou dominantes componentes da fileira imobiliária que participam no processo do “milagre”, são as dos promotores imobiliários ou outros proprietários de ativos transacionados e a intermediação imobiliária.

Os primeiros que, regra geral, apresentam uma grande ligação ao sistema financeiro e ao capital estrangeiro, reaverão parte ou a totalidade, com ou sem mais ou menos valias, do valor dos investimentos feitos no passado, parte dos quais irá por sua vez regressar ao sistema financeiro.

Os segundos, que embora em termos gerais empreguem um número significativo de trabalhadores mas que, dadas as características que suportam estas transações, são contudo muito poucos os intervenientes no processo de transação de ativos de valor tão elevado e, regra geral, altamente colocados nas organizações. Trata-se, portanto, de um impacto económico e financeiro reduzido, cerca de 5% do valor das transações.

 

Quinto aspeto: Embora não constituindo de todo ativos e atividades estratégicas, não deixa de apresentar alguma preocupação a crescente dominância pelo capital estrangeiro de zonas e edifícios nobres das grandes cidades, nomeadamente em zonas históricas, de grandes infraestruturas comerciais, a que acresce o quase completo domínio da intermediação imobiliária em Portugal por empresas americanas.

Esta espécie de desnacionalização do setor, segue de perto processo idêntico associado à propriedade rústica, particularmente no Sul do país.

 

*Conforme as diferentes fontes estatísticas, assim usam a unidade fogo ou a unidade edifício.

 

Fernando Sequeira