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Mesa da sessão: Luís Mendes, Luís Morais, João Ferreira (da esquerda para a direita)

 

O Espaço Cultural Santa Catarina, em Lisboa, acolheu, na passada sexta-feira, a sessão-debate «A questão da habitação em Lisboa e a gentrificação», a propósito da apresentação do livro «Habitação. Questão Nacional, Direito Constitucional», publicado em abril deste ano. No debate participaram João Ferreira, vereador da Câmara Municipal de Lisboa e deputado no Parlamento Europeu e Luís Mendes, geógrafo e investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa.

 

A recente publicação do oitavo Caderno Poder Local, inserido no espírito da revista Poder Local, o de apoiar a construção do aparelho de Estado local, através do debate de problemas e soluções e da recolha e divulgação de experiências de gestão democrática, trouxe novos elementos para o, já longo, mas longe de estar esgotado, debate sobre o problema da habitação.

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Capa do caderno Poder Local sobre habitação

 

Este problema é habitualmente colocado à luz da contradição entre o direito à habitação constitucionalmente reconhecido no artigo 65.º e a sua efetivação prática. No relatório apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, sobre as condições de habitação em Portugal, em março deste ano, a política de austeridade imposta pela troika internacional (a pretexto do empréstimo de 78 mil milhões de euros), mas bem acolhida pelo XIX Governo Constitucional, entre 2011 e 2015, é mencionada como uma das principais causas da exclusão do direito à habitação.

 

Num cenário geral de empobrecimento do País e de aprofundamento das desigualdades (dados da OCDE de 2016 expressam que os 20% mais pobres têm 6,9% da riqueza nacional, ao passo que os 20% mais ricos concentram 41,5% dessa riqueza), o poder local tem sido chamado a intervir, pela proximidade ao problema. Mas a contribuição das autarquias não pode, nem deve, permitir que se esqueça que esta é uma questão de âmbito nacional, competindo ao Governo a sua resolução. As últimas propostas de «descentralização» para as autarquias locais comportam a preocupante transferência para os municípios da responsabilidade pelos programas de apoio ao arrendamento urbano e sobre o parque habitacional público na posse de institutos centrais.

 

Embora a habitação seja habitualmente discutida à luz da simplicidade do equilíbrio mecânico entre oferta e procura, no seio da economia de mercado, o facto é que o problema da habitação assume uma dimensão de ordem estrutural. Luís Mendes teve oportunidade de esclarecer que o espaço urbano construído não resulta de qualquer espontaneidade, desordem ou caos, mas, pelo contrário, é algo produzido em consequência da ação das diferentes forças económicas e institucionais, de relações sociais ocorridas num determinado lugar e num determinado tempo, e de processos de valorização do capital, que procuram mais-valias atrativas e fáceis de atingir.

 

A par do processo geral de precarização da situação laboral dos trabalhadores, frisou Luís Mendes, regista-se a desregulação do mercado de habitação e de uso do solo urbano e o desenvolvimento de processos especulativos de valorização fundiária e imobiliária, num contexto de financeirização do ambiente construído. Enquanto isto, os governos locais orientam-se pela perspetiva de uso de modelos de gestão importados do mundo empresarial, aplicando os recursos públicos para atrair investimento, normalmente sob a forma de parcerias público-privadas. João Ferreira deu como exemplo destas parcerias o Programa de Renda Acessível, anunciado no mandato em curso, que prevê a construção ou reabilitação de cinco a sete mil fogos, a disponibilizar para rendas controladas, sendo que se desconhecem ainda as condições de implementação do programa.

 

Neste contexto, o regime fiscal favorável para os Residentes não Habituais e para Fundos de investimento Imobiliário (2009), o Novo Regime de Arrendamento Urbano (2012), a simplificação da Lei do Alojamento Local (2014), para além dos chamados golden visa e da simplificação dos licenciamentos de operações de requalificação urbanística por agentes privados, apontam no sentido de construção de um quadro legal e fiscal que esvazia a habitação do seu estatuto de direito, em favor do estatuto de mercadoria. A este propósito, João Ferreira denunciou o acordo entre PS e PSD aquando da revisão do Plano Diretor Municipal, em 2012, com vista à liberalização do uso do solo em Lisboa, deixando o desenvolvimento da cidade nas mãos dos promotores imobiliários e dos especuladores.

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Vista da sessão a partir do público

 

Sendo a habitação vista como uma mercadoria, a gentrificação não é mais do que a consequência de um processo complexo de valorização do capital, que tem expressão na requalificação dos bairros pobres e de classes trabalhadoras no centro das cidades, levando à substituição dos residentes atuais por proprietários e inquilinos de classe média e média-alta. Luís Mendes chamou a atenção para o facto de, em Lisboa, nos últimos cinco anos, os preços de habitação para arrendamento terem aumentado entre 13% e 36%, e para aquisição terem subido até 46%, consoante as áreas da cidade, em função direta da gentrificação; ao mesmo tempo que a oferta de arrendamento para habitação permanente diminuiu 75%.

 

João Ferreira salientou o facto de a Câmara Municipal de Lisboa ser o maior proprietário da cidade, detendo, para além do seu património disperso, setenta bairros municipais, com perto de cem mil habitantes. Nestes bairros camarários persistem situações que o vereador considera atentatórias da dignidade dos moradores – habitações e espaço público degradados, ausência de equipamentos, limpeza e transportes públicos, prédios com graves problemas estruturais e de salubridade, apesar de apenas num ano o Município ter arrecadado, em receitas provenientes da taxa turística, mais de metade do valor que espera gastar durante o mandato inteiro, na recuperação destes bairros.

 

As intervenções do público, constituindo maioritariamente testemunhos pessoais, refletiram a abrangência do debate sobre as questões da habitação em Lisboa, que tem tido lugar nos tempos mais recentes. De todas as questões suscitadas, a que tem mais relevância para o futuro é, porventura, aquela que se relaciona com aquilo que as autoridades municipais podem fazer para oferecer resistência à mercadorização do território e da habitação. Sendo certo que problemas de dimensão estrutural apenas são passíveis de ser resolvidos por ação do Governo, as Câmaras Municipais têm ao seu dispor instrumentos de controlo de uso do solo por particulares, para além da taxação direta do solo ou de mais-valias, através da coleta de impostos, de modo a retirar aos proprie­tários, tanto o resultado do aumento do valor do solo, como dos imóveis em si, no âmbito de processos de requalificação (entenda-se, de especulação). Na mesma linha, a taxação de benfeitorias, sobre o investimento de capital em benfeitorias ou sobre a renda do capital investido em benfeitorias, inibe a pre­disposição dos proprietários para substituir imóveis ou os seus usos, reduzindo ações especulativas.

 

Todos estes são aspetos a considerar numa política pública que entenda a habitação como um bem social e não uma mera fonte de lucro e que defenda quem não tem qualquer tipo de proteção, garantindo o direito à habitação e o direito à cidade. Mas estes direitos apenas serão assegurados se houver uma maioria social que os defenda. Cabe-nos agir para que isso aconteça.

 

 

 

Luís Morais

(geógrafo)