Nota de edição: o texto apresentado corresponde à intervenção feita no encontro«Habitação, direito constitucional»

 

A habitação não pode ser analisada à margem do mercado de trabalho, das relações sociais, das estruturas familiares, nem das dinâmicas urbanas e territoriais. Não pode ser vista como mero resultado do jogo entre oferta e procura. Para além das formas como o espaço de habitação pode ser fruído e sentido e de ser um elemento identitário de indivíduos ou grupos, a habitação responde a uma necessidade social que não pode ser desligada do sistema económico, nem da expansão urbana a ele associada.

Pegando no conceito de urban sprawl, a tendência de dispersão urbana prende-se com um modelo de organização funcional do território muito específico e as diferentes capacidades de pagar o usufruto do solo produzem reconfigurações na estrutura das cidades. Hoje assistimos a uma reconfiguração que não é uma mera expansão em mancha de óleo. É ao mesmo tempo alargamento dos perímetros urbanos, substituição dos centros antigos por novos e mesmo mudanças internas nos espaços já consolidados.

A organização do espaço urbano é ditada pelo sistema económico que busca o lucro máximo das operações de investimento. Por um lado, o capital imobiliário surge com vista a responder a uma procura crescente de habitação (seja em geral, seja de grupos específicos) em face da grande concentração urbana. Por outro lado, a habitação e a procura, de alojamento podem ser analisadas à luz do seu valor de uso e do seu valor de troca, como investimento tanto para um proprietário ocupante/residente, como para outros investidores.

A habitação é ao mesmo tempo:

                - uma mercadoria, uma fonte geradora de lucro e um veículo para a acumulação de capital para certos setores do capital industrial, que não dispensa a intervenção de outras formas e capital, o capital financeiro, para a obtenção de lucro;

                - um bem de consumo, indispensável à reprodução da força de trabalho e como instrumento de reprodução das relações sociais constitui um foco de conflito – veja-se o processo do Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU): proprietários v.s. inquilinos.

No nosso país, tivemos um período de grande crescimento dos centros urbanos que foi acompanhado de uma generalizada falta de alojamento e de grande especulação imobiliária e de aumento de preços.

O processo especulativo de natureza fundiária dirigiu a oferta essencialmente para a procura solvente, atendendo à baixa produtividade do setor da construção, a uma taxa de rotação do capital longa e a uma grande dependência da participação do capital financeiro.

Ao capital industrial convinha a produção de habitação de baixo custo e remunerar o menos possível o trabalho, aumentando os lucros e a taxa de acumulação do capital. Ao capital financeiro, convinham preços mais altos dos alojamentos, permitindo lucros maiores por esta via e novas e diversificadas oportunidades de investimento.

A produção de habitação está ligada, assim, aos processos de acumulação do capital. Mas também está ligada aos seus processos de circulação. Os expoentes imobiliários têm coincidido com a transferência do capital da esfera produtiva para a produção do ambiente construído em épocas de excesso de liquidez e de problemas de acumulação no setor produtivo.

Em Portugal, vimos, a partir dos anos de 1960, surgir a penetração do capital financeiro nacional (banca e seguros) no setor imobiliário, sobretudo nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e no Algarve.

Os anos de 1980 trouxeram da «Europa connosco» para a Europa de cá um forte investimento imobiliário, quer de capitais estrangeiros, quer nacionais, particularmente em habitação de luxo, no imobiliário comercial, na reestruturação do setor da construção, na sua especialização e profissionalização.

O mercado imobiliário está cada vez mais diluído no sistema financeiro, quer diretamente, quer indiretamente por via do crédito, com resultados bastante negativos. Veja-se o caso da conhecida crise do subprime na América do Norte, com o seu lastro de desalojamento, empobrecimento e ruína do investimento em contexto de forte liberalização do setor.

A nobilitação, processo de segregação residencial mais conhecido por gentrificação, aparece com frequência associado à reabilitação urbana dos centros das cidades e é não raras vezes apresentado como um processo benigno. Na prática assistimos a uma forma de privatização de lucros e de socialização de custos, já testemunhada noutros setores de atividade.

Do ponto de vista social, a reabilitação urbana que a nobilitação encerra, traz consigo um processo de filtragem social. Os residentes mais antigos, veja-se o que sucede em Lisboa, vão sendo substituídos por outros moradores, quase sempre pertencentes a classes sociais e grupos socioeconómicos favorecidos.

Voltando ao princípio, a resposta aos problemas sentidos passa pelo entendimento que se tem da habitação e de como esta é vista.

Ou a entendemos no seu sentido económico ou entendemo-la como um bem social. Ora, um bem social está relacionado com uma necessidade, a de alojamento, de abrigo, de acolhimento, apresentando o problema de forma simplificada.

Isto exige que avaliemos as condições de acesso à habitação.

Poderia focar muitos outros aspetos, mas refiro-me apenas ao NRAU, que impõe um mecanismo de atualização de rendas que leva a que se atinjam valores incomportáveis para muitos portugueses, o que abre caminho a um cenário de desalojamentos que se perfila com a facilitação de ações de despejo.

O suposto regresso do mercado de arrendamento, com a falência do modelo da nova construção e da aquisição de habitação com recurso ao crédito, radica numa procura de mais-valias mais atrativas. O objetivo não é relançar meramente o mercado de habitação. Verifica-se um processo seletivo que dirige o investimento imobiliário para o alojamento de curta duração, para o turismo, para as mais-valias mais proveitosas. Isto acontece em detrimento do tradicional mercado de habitação para residência permanente.

Parece mais do que evidente a necessidade de instrumentos de controlo de uso do solo, para além da taxação direta do solo. O controlo de preços, controlando os preços finais com a regulação de patamares máximos, acaba por produzir, no longo tempo, algum imobilismo dos promotores privados, pese embora este poder ser um instrumento importante em períodos de crise económica ou de especulação desenfreada. O atual mercado de arrendamento acaba por padecer desse mal. Relançá-lo, por um lado, e proteger os inquilinos, por outro, constitui um autêntico desafio.

A taxação das mais-valias permite, através da coleta de impostos, que se retire aos proprietários, tanto o resultado do aumento do valor do solo, como dos imóveis em si, no âmbito de processos de requalificação.

Na mesma linha, a taxação de benfeitorias, sobre o investimento de capital em benfeitorias ou sobre a renda do capital investido em benfeitorias, inibe a predisposição dos proprietários para substituir imóveis ou os seus usos, reduzindo ações especulativas.

Tudo isto são aspetos a considerar numa política púbica que entenda a habitação como um bem social e não uma mera fonte de lucro e que defenda quem não tem qualquer tipo de proteção, garantindo o direito à habitação e o direito à cidade.

 

 

Luís Morais

(geógrafo)