DA ATUALIDADE
Num momento em que Governo do PSD-CDS/PP e municípios de maiorias, quer dos Partidos que sustentam o Governo quer do PS, pretendem impor a municipalização da resposta a importantes imperativos constitucionais, nas áreas da saúde, da educação, da segurança social ou da cultura, será interessante olhar para o que se passou com outro, não menos importante, imperativo: o do direito à habitação. Os processos não se repetirão mas as semelhanças existem e são de vulto.
DO PROCESSO
Começar por recordar que o país herdado do regime fascista, no 25 de Abril, apresentava profundas carências em todas aquelas áreas que a Constituição da República, de 2 abril de 1976, tornou incumbência do Estado suprir. Restringindo-nos à problemática da habitação, recordem-se as mais de trinta mil famílias residindo em barracas, as enormes áreas de loteamento ilegal carentes de equipamentos e infraestruturas, o facto de apenas trinta e dois por cento dos fogos possuirem duche ou banho, de apenas quarenta e sete por cento terem água canalizada, de apenas cinquenta e oito por cento disporem de instalações sanitárias. Tenha-se ainda em atenção o facto de, com o processo de descolonização, terem regressado ao país, carecendo de realojamento, cerca de trezentos mil cidadãos nacionais até aí residentes nas ex-Colónias.
Perante este quadro, e mesmo antes da aprovação da Constituição da República, os Governos Provisórios encetaram políticas de Estado tendentes à garantia do direito à habitação. Nesta linha encontram-se a conclusão dos planos integrados, iniciados pelo anterior Fundo de Fomento para a Habitação, o Programa SAAL destinado a proceder ao realojamento das famílias residentes em barracas, apostando na autoconstrução e com grande participação das populações, os Contratos de Desenvolvimento para Habitação (CDH), produzindo fogos de custo e qualidade controlados e indexando o valor do solo ao custo final do edificado.
Estas são políticas, de clara intervenção do Estado/Administração Central na criação de habitação, que começam a ser postas em causa, ainda que de forma gradual, após os Acordos com o Fundo Monetário Internacional negociados por governos presididos por Mário Soares (o primeiro em 1977/8 e o segundo em 1983/4, num governo de Bloco Central PS/PSD). A tónica dominante era a de retirar o Estado de diversos setores da vida e da economia nacional, o chamado “menos Estado”.
As imposições do FMI, para a área da habitação, determinaram um objetivo quase exclusivo para os financiamentos públicos: desenvolvimento do mercado imobiliário privado e da promoção para aquisição de casa própria. Tal obrigou à redução drástica dos apoios aos CDH e à habitação cooperativa e, ainda, ao início do processo de alienação do parque habitacional público.
A nível nacional, o segundo acordo com o FMI traduziu-se pela degradação das condições de vida das populações trabalhadoras, em especial do proletariado industrial, face ao início da destruição da capacidade produtiva nacional. Desemprego atingindo os nove por cento da população ativa (1983), salários em atraso afetando mais de cem mil trabalhadores (1984), inflação superior aos trinta por cento (1983), retoma da emigração, crescimento do número de barracas para fins habitacionais, em especial na área Metropolitana de Lisboa.
O Governo PS-PSD foi substituído, após eleições em novembro de 1985, por governos chefiados por Cavaco Silva. Antes de ser substituído tinha atingido o seu grande objetivo estratégico, a entrada de Portugal na, então, CEE. Seria por dinâmicas desta, depois denominada União Europeia, que prosseguiriam as políticas de desmantelamento do aparelho produtivo nacional, bem como a sanha contra o papel do Estado nas políticas sociais.
Com os governos de Cavaco Silva começa a ser defendida a assunção pelos municípios, de forma não universal, da responsabilidade pela resolução dos problemas de habitação. O Decreto-Lei n.º 226/87, de 3 de Junho, é o primeiro diploma a estabelecer que “a resolução dos problemas de habitação dos agregados familiares de baixos recursos económicos passaria por uma colaboração entre o Estado e as autarquias”. A colaboração da Administração Central correspondia a subsídio a fundo perdido que poderia ir até cinquenta por cento do valor da construção. O restante, de responsabilidade municipal, era objecto de financiamento.
Apesar de ser uma responsabilidade que começava a ser transferida, de forma avulsa e sem cobertura de qualquer lei de delimitação de atribuições e competências, municípios houve, Lisboa e Oeiras entre outros, que a ela aderiram de forma entusiástica.
Posteriormente, com o Decreto-Lei n.º 163/93, de 7 de Maio, ainda de forma não universal, nova imposição foi colocada às autarquias: realojar a população residente em barracas, nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto. Era assim criado o chamado Programa Especial de Realojamento (PER), responsável pelo realojamento de mais de quarenta e oito mil famílias nas duas áreas metropolitanas. O financiamento do programa seria garantido da seguinte forma: quarenta por cento de subsídio proveniente da Administração Central, quarenta por cento obtido através de endividamento e vinte por cento de esforço imediato do município (percentagens referidas nos valores máximos dos fogos, definidos anualmente em portaria).
É com base nas adesões a estas transferências que a Lei nº 159/99, de 14 de Setembro, “Lei de Transferência de Atribuições e Competências Para as Autarquias Locais” vem, no seu artº 24, estabelecer que “compete aos órgãos municipais: a) Disponibilizar terrenos para a construção de habitação social; b) Promover programas de habitação a custos controlados e de renovação urbana; c) Garantir a conservação e manutenção do parque habitacional privado e cooperativo, designadamente através da concessão de incentivos e da realização de obras coercivas de recuperação dos edifícios; d) Fomentar e gerir o parque habitacional de arrendamento social; e) Propor e participar na viabilização de programas de recuperação ou substituição de habitações degradadas, habitadas pelos proprietários ou por arrendatários.”
O que significou este passar de competências para os municípios, em termos de verbas do Orçamento de Estado, é bem traduzido pelos números seguintes, referentes à forma como foram distribuídos os cerca de nove mil e seiscentos milhões de euros (9600 M€), investidos pelo Estado, entre 1987 e 2011, na área da habitação. Em bonificação de juros do crédito à aquisição de casa própria, sete mil e quarenta e sete milhões de euros (7046,6 M€); em programas de realojamento, mil trezentos e cinquenta e três milhões de euros (1353,4 M€); em incentivos ao arrendamento, oitocentos e quatro milhões de euros (803,8 M€); em promoção direta do Estado, cento e noventa e quatro milhões de euros (193,9 M€); em reabilitação de edifícios, cento e sessenta e sete milhões de euros (166,6 M€); em subsídios de renda pela Segurança Social, vinte e nove milhões de euros (29,2 M€); em CDH, catorze milhões de euros (13,9 M€). Ou seja, do investimento do Estado para a habitação, durante os vinte e cinco anos que sucederam às primeiras tentativas de transferência da competência para os municípios, cerca de apenas dezasseis por cento, correspondentes a programas de realojamento e à promoção direta do Estado, serviram ao setor público. O resto, oitenta e quatro por cento, serviu ao privado.
Como resultado mais visível, entre 1993 e 2013 produziram-se, em Portugal, um milhão e quinhentos mil fogos, elevadíssimo número dos quais se encontram devolutos. Na sua quase totalidade corresponderam a construção nova, apresentando o país mais de quatrocentos mil edifícios a necessitarem de obras significativas. Na sua quase totalidade destinaram-se ao mercado privado, continuando Portugal a ter uma das mais baixas percentagens europeias de fogos de habitação social: três por cento do total (3,3 %), enquanto na Bélgica essa percentagem é de sete por cento (7,0%), na Irlanda de nove por cento (8,7%), na França de dezassete por cento (17,0%) e no Reino Unido de dezoito por cento (18,0%).
DO RESULTADO
No 25 de Abril, podia-se afirmar que existia em Portugal um problema de habitação. Em 1993, podia-se afirmar que em Portugal faltavam quinhentos mil fogos. Hoje pode-se afirmar que não faltam fogos, faltam políticas de correto aproveitamento dos recursos e dos bens do país. Políticas que têm de ser nacionais e não simulacros de políticas municipais.
Hoje, mercê da continuada prática de políticas de destruição do aparelho produtivo, da precariedade no trabalho e do crescimento do desemprego, muitos daqueles que haviam acreditado que o mercado resolvia o seu problema de habitação, chegaram à trágica conclusão de que a realidade era bem diferente. O enorme esforço de endividamento pedido às famílias portuguesas (em 2011 eram mais de um milhão e duzentas mil – 1253345 – as famílias com encargos de aquisição de habitação), o endividamento do Estado e da banca conduziram afinal aos milhares de fogos penhorados pela banca ou pelo fisco.
Penhoras que se traduzem em despejos. Logo em abril de 2011, uma imobiliária (Remax) anunciava ufana que tinha para venda três mil e quinhentos fogos penhorados pela banca. E isto, no início do processo. A estas penhoras acrescem os quase oito mil imóveis, na sua enorme maioria habitações, penhoradas pelo fisco, entre 2013 e março de 2015. E quanto a despejos, acrescem ainda os quase quatro mil (3804) executados pelo Balcão Nacional de Arrendamento, nome verdadeiramente antitético, criado pela iníqua Lei nº 31/2012, de 14 de agosto, muito justamente cognominada de lei dos despejos.
São milhares de famílias a quem, num doloroso processo de roubo de trabalho e de lançamento na pobreza, acaba por ser retirado o teto. São milhares de famílias que acabam por recorrer aos balcões dos municípios procurando os inexistentes fogos do parque habitacional público. Municípios que não são responsáveis pelas decisões macroeconómicas ou pelas políticas nacionais que conduziram à espiral de empobrecimento. Municípios que, algumas vezes a gosto, aceitaram competências que só centralmente podem ser exigidas e garantidas.
Com a municipalização da habitação, ganhou o capital financeiro-imobiliário que teve o Orçamento de Estado às ordens, em nome da habitação. Perderam os portugueses e perderam os municípios.
Lino Paulo