(Des)Ordenamento do território

Interior esquecido

E nós? Não somos gente?

 

PNCT

 

Há uns anos, numa viagem a Lisboa pela ponte Vasco da Gama, um pouco antes de entrarmos na segunda circular, o amigo que me acompanhava, apontando para os prédios à nossa esquerda, sentenciou com a ironia que o caracteriza: «Há mais gente encaixotada naqueles galinheiros do que toda a população do nosso concelho!» Ouvi sem comentar, mas aquilo despertou-me os sentidos levemente entorpecidos pela viagem. E fiquei a pensar…

Realmente tinha razão! Só naquela meia dúzia de hectares havia mais pessoas do que nos quase 444 quilómetros quadrados do território do município de Mora!

Já durante a reunião de trabalho que nos tinha levado à capital, ainda a pensar na tirada do meu amigo, estabeleci involuntariamente uma associação mental com a alegoria da Jangada de Pedra. Neste livro do nosso único Nobel da literatura, por um conjunto de circunstâncias obviamente ficcionais, a península Ibérica separa-se da Europa, partindo à deriva oceano fora. Mas como a nossa imaginação não tem limites, o que eu via na minha cabeça não era a península Ibérica, mas apenas parte dela: um rectângulo feito jangada de cerca de 800 quilómetros de comprimento por 200 de largura que, de tanto adernar, acaba por naufragar tal era o peso exercido pelas pessoas amontoadas a bombordo, que as poucas do outro lado não conseguiam compensar. E assim, para desespero meu, patriota de sempre (não nacionalista!), assistia impotente ao naufrágio de Portugal!

Apesar da ficção se inspirar muitas vezes na realidade, como é o caso, ainda vamos a tempo de salvar Portugal do naufrágio, caso haja vontade política para tanto e coragem para que sejam tomadas as medidas que há muito se impõem, e venham corrigir de vez as desigualdade e assimetrias regionais que, apesar da esperança nascida com Abril, fazem dos cerca de dois milhões de portugueses que vivem no interior, cidadãos de segunda e votam ao abandono mais de dois terços do território. Tudo isto numa complacente violação da Constituição da República cuja alínea d) do artigo 81.º incumbe o Estado de «Promover a coesão económica e social de todo o território nacional, orientando o desenvolvimento no sentido de um crescimento equilibrado de todos os sectores e regiões, e eliminando progressivamente as diferenças económicas e sociais entre a cidade e o campo e entre o litoral e o interior».

Porém, o que os números revelam, no período compreendido entre 1960 e 2011, é infelizmente o contrário. Verificamos um aumento da população global de aproximadamente 20% (passou de 8 292 500 para 10 047 621 habitantes) e uma perda da população na ordem dos 30% no conjunto dos territórios do interior. No litoral a população não só cresceu naturalmente como aumentou com todos aqueles que por razões sócio-económicas foram obrigados a abandonar o interior. O Estado falhou!

Vem esta já longa introdução a propósito do Programa Nacional de Coesão Territorial (PNCT) actualmente em debate público. O documento é o resultado da Unidade de Missão para a Valorização do interior (UMVI), cujo desígnio visa «Corrigir os desequilíbrios, as diferenças, as disparidades e as assimetrias continuadas entre o litoral mais povoado, mais jovem, mais rico e mais “acessível” (serviços, equipamentos e infraestruturas), e o interior envelhecido e com menos oportunidades» (sic).

Perante tão nobre desígnio, eu, modesto combatente de todas as desigualdades que, directa ou indirectamente, atingem o ser humano, deveria rejubilar de alegria. Mas não! Acontece que sendo eu também praticante confesso da dúvida sistemática, não consigo acreditar na bondade de tal documento.

Porquê?

Primeiro, porque «quando a esmola é grande, o pobre desconfia».

Segundo, porque tenho presente o longo historial de programas de correcção das assimetrias regionais anunciadas por sucessivos governos que não sairam da gaveta.

Terceiro, porque o PNCT parte de um diagnóstico errado, confundindo, nomeadamente, causas com consequências. Com efeito, as causas apontadas teriam a ver com uma mão-de-obra pouco qualificada, uma estrutura empresarial pouco diversificada ou qualificada e com um défice de capacidade de inovação. Ora, na realidade, estes factores internos são de facto consequências da situação de discriminação negativa de que sofre o interior do País.

As verdadeiras causas encontramo-las sim na desindustrialização generalizada do País, na falta de apoio à agricultura familiar, na ausência de incentivos à fixação das populações (como dos médicos, por exemplo), no encerramento de escolas, de extensões, centros de saúde e valências hospitalares, de tribunais, de postos de correio, de balcões da segurança social, da supressão de linhas ferroviárias, da degradação da oferta de transportes públicos rodoviários, e na extinção arbitrária de centenas de freguesias contra a vontade e o interesse das populações ou na falta de vontade política para a sua reposição como se verificou recentemente. O encerramento, em Almeida, sede de um município do interior, do balcão do único banco público, é infelizmente revelador do modelo de desenvolvimento que nos querem impor.

Há razões de sobra que me impedem de acreditar no tal Programa Nacional de Coesão Territorial.

Que fazer então? Resignar-nos? Jamais! O subdesenvolvimento do interior, as assimetrias regionais e a falta de coesão territorial não são uma fatalidade nem fruto da maldição divina, mas sim da vontade, ou da falta dela, de alguns homens…

Por último e em jeito de confidência: desconfio que, mais cedo que tarde, vamos descobrir que este PNCT faz parte de uma operação mais vasta a que não é alheio o processo em curso de descentralização de competências para as autarquias locais que, por sua vez, não pode ser dissociado do adiamento sine die da regionalização consagrada na Constituição da República.

A ver veremos!

 

José Manuel Ribeiro Pinto

(técnico superior da Câmara Municipal de Mora)