A partir das implicações do actual Regime Jurídico do Serviço Público do Transporte de Passageiros

O anterior governo PSD/CDS concretizou um ininterrupto, vasto e violento ataque contra os direitos do povo português, na qual se integrou a política de desinvestimento e privatização no sector dos transportes públicos de passageiros.

Foi determinante a mobilização dos trabalhadores do sector, dos utentes e dos eleitos locais para travar esta senda privatizadora. No entanto, persiste o gritante abandono e a falta de investimento, para a qual contribui agora a inércia do actual governo PS, agravando e precipitando a vertiginosa degradação dos transportes públicos, particularmente evidente nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto.

A actual situação põe em causa o direito à mobilidade, sem que esse foco no direito das populações desvalorize toda a importância da eficácia e operacionalidade de um sistema de transportes no plano da economia nacional, regional e local.

Na persecução do objectivo de garantir o direito das populações à mobilidade, importa tratar aqui a questão do Transporte Público Rodoviário de Passageiros, processo que deve hoje concentrar grande atenção por parte daqueles que nele intervêm e que dele devem beneficiar – as populações.

O Regulamento Comunitário 1370 de 2007 e a sua transposição para a lei portuguesa (consagrado na Lei 52/2015 que aprovou o Regime Jurídico do Serviço Público do Transporte de Passageiros), nasceram para dar um novo salto na liberalização do sector, tendo o primeiro sido dado com a destruição e privatização, aos pedaços, da antiga Rodoviária Nacional.

A implementação concreta deste processo, se é certo que apresenta todos os perigos de um processo de liberalização, apresenta também potencialidades que, conhecidos os seus alcances e limites, podem contribuir para inverter, pelo menos em alguns aspectos, a política que tem sido desenvolvida para o sector por consecutivos governos.

 

Dos perigos

As operadoras privadas, onde fornecem o serviço público de transporte rodoviário de passageiros, por natureza, operam e continuarão a operar em benefício e proveito próprio. O Regime Jurídico reforça o poder dos operadores privados na medida em que pulveriza as autoridades de transportes.

As Autoridades de Transportes que o actual Regime Jurídico insta criar (no caso dos municípios integrados nas Comunidades Intermunicipais) e que impôs que se constituíssem no caso dos municípios das Áreas Metropolitanas, na sua aplicação linear, resultaria na existência de 308 autoridades de transporte, - de uma autoridade por cada município, para que cada um por si trate do «seu problema», o que implica decidir e pagar.

Isto viola a lógica de funcionamento de qualquer sistema de transportes integrado e coerente nas suas ligações locais, municipais, regionais ou nacionais.

O perigo que aqui deve ser claramente identificado é o de uma ainda maior desarticulação do sistema, a par de uma redução da capacidade reivindicativa que ao poder local se exige ter.

O actual Regime Jurídico procura impor às autarquias responsabilidades e encargos acrescidos com os transportes públicos rodoviários de passageiros, numa clara desresponsabilização do Estado central nesta função, transferindo as competências sem transferir os meios, criando novas obrigações directas, entre as quais as financeiras, para os municípios – entenda-se, para as populações e os utentes.

O perigo aqui é evidente. As novas autoridades de transporte ver-se-ão a braços com a necessidade de optar entre três alternativas impossíveis: recorrer a recursos financeiros próprios; impor novas taxas ou tarifas; reduzir a oferta até à oferta solvente.

O actual Regime Jurídico determina ainda que até 3 de Dezembro de 2019 terminam todas as actuais concessões, licenças e alvarás, onde cada Autoridade de Transportes, se constituída, pode, em alternativa:

          (1) Assumir directamente o serviço público;

          (2) Entregar esse serviço a um operador interno;

          (3) Colocar esse serviço em concurso.

Reside aqui um dos principais perigos para os trabalhadores. Qualquer uma das três opções pode significar uma profunda alteração na forma como o serviço é prestado (fusão ou cisão de redes, alteração das empresas prestadoras). O regulamento comunitário expressamente prevê a possibilidade das autoridades de transportes salvaguardarem os direitos dos actuais trabalhadores: «Sem prejuízo do direito nacional e comunitário, incluindo os acordos colectivos celebrados entre os parceiros sociais, as autoridades competentes podem exigir aos operadores seleccionados que proporcionem ao pessoal previamente contratado para a prestação dos serviços os direitos que teriam sido concedidos a esse pessoal caso tivesse sido efectuada uma transferência na acepção da Directiva 2001/23/CE. Sempre que as autoridades competentes exijam dos operadores de serviço público o cumprimento de determinados padrões sociais, os documentos relativos aos concursos e os contratos de serviço público devem incluir uma lista dos membros do pessoal em causa e fornecer informações transparentes relativas aos seus direitos contratuais e às condições nas quais os trabalhadores são considerados vinculados aos serviços.».

Portanto, em todas as fases do processo, importa intervir de forma a salvaguardar todos os postos de trabalho hoje existentes, a proteger os direitos dos actuais trabalhadores (incluindo a contratação colectiva e a antiguidade) e a evitar deslocalizações forçadas.

 

Das potencialidades

Mas é aqui igualmente que reside uma importante potencialidade deste processo: optar pela solução do operador interno, permitir uma intervenção racionalizadora, de planificação do sistema, promovendo o alargamento da oferta e a atractibilidade do sistema.

Em particular nas áreas metropolitanas, é real a possibilidade de colocar como condição do sistema metropolitano a existência de um sistema de bilhética comum e único, com um passe para todos os operadores, para todas as carreiras e para toda a região, à semelhança do que tem vindo a propor o PCP na Assembleia da República e como justamente os utentes reclamam.

É real a possibilidade de melhorar a coordenação do transporte escolar com a existência de um serviço público de passageiros.

É real a possibilidade de acabar com o recolher obrigatório que impera mesmo em vastas regiões urbanas.

Da mesma forma, em vez de manter o sistema largamente refém dos operadores privados, pode-se procurar soluções assentes em operadores públicos internos. É preciso entender que só se liberta da chantagem dos operadores privados quando se tiver a capacidade de planificar uma existência sem eles.

 

O decisivo

Estas possibilidades existem. Mas, no entanto, estão condicionadas à questão do financiamento. As verbas que o Estado descentralizou não são suficientes sequer para cobrir os custos do funcionamento das autoridades de transporte, quanto mais os custos do serviço público. De uma forma ou de outra, seja por via das compensações ao passe social intermodal (que hoje estão reservadas aos privados!), seja por via de uma descentralização de verbas para assegurar os níveis de serviço mínimo, o Estado central não se pode desresponsabilizar do seu papel no funcionamento do sistema, ao mesmo tempo que terá sempre, em qualquer circunstância, de fazer acompanhar a competência que quer descentralizar dos respectivos meios necessários para a concretizar.

 

Concluindo

Face ao fim das actuais concessões em 2019 e à aplicação do actual Regime Jurídico, a opção a tomar deve procurar assegurar cinco objectivos fundamentais:

          (1) contribuir para travar o processo de liberalização no sector dos transportes;

          (2) garantir todos os direitos dos trabalhadores do sector (salários, postos de trabalho e bases territoriais);

          (3) alargar a oferta pública de transportes;

          (4) reduzir os custos para os utentes e

          (5) salvaguardar a independência financeira das autarquias.

 

 

Gonçalo Tomé

(psicólogo)