O poder local democrático é um dos elementos estruturais da democracia. É uma conquista do 25 de Abril, sendo simultaneamente expressão da vontade e da participação popular e um instrumento fundamental para a resolução dos problemas das populações.

 

O ataque ao poder local, tal como às conquistas de Abril, iniciaram-se com a sua consagração, por quem nunca aceitou as amplas conquistas populares impulsionadas pela revolução portuguesa. Com a revolução portuguesa, o que melhor caracterizava e distinguia o poder local, como conquista de Abril, “é a imensa participação popular na variedade dos seus órgãos e a articulação destes com as organizações populares de base e com as mais variadas organizações sociais; é o sistema de eleição directa e proporcional dos seus principais órgãos; são as importantes funções que já desempenham e os já notáveis recursos a que têm acesso, isto é, a descentralização administrativa e a autonomia financeira que, apesar de tudo, foi possível alcançar”1(Costa, 1981).

Desde logo pela concepção da organização e funcionamento das autarquias locais: enquanto muitos entendiam e entendem como um prolongamento ou instrumento do Poder Central, as autarquias locais, tal como estatui a Constituição são “pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (…) No continente as autarquias locais são as freguesias, municípios e as regiões administrativas (…) as atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos órgãos, serão reguladas por lei, de harmonia com o princípio da descentralização administrativa.”2

 

Exige-se assim, desde já, uma clarificação dos conceitos:

 

 

Descentralizar vs Desconcentrar vs Desresponsabilizar

 

Apesar dos esforços para confundir os conceitos, na verdade existem diferenças entre descentralizar, desconcentrar e desresponsabilizar.

Se a descentralização significa a “transferência de poderes para órgãos representativos das comunidades locais ( …), que os exercem com autonomia”, o que exclui “qualquer relação hierárquica”, por desconcentração, pelo contrário, “entende-se a transferência de poderes para serviços subalternos da própria administração central ou para serviços «externos», cujos dirigentes são nomeados pelo governo ou outras entidades da administração central, poderes esses que são exercidos segundo as ordens e directrizes dos seus superiores hierárquicos”3(Sá, 1986). Pode-se assim concluir que a “descentralização implica redistribuição do poder, uma transferência na alocação das decisões. É, portanto, mexer nos interesses dos grupos de poder, enquanto a desconcentração é a delegação de competência sem deslocamento do poder decisório”4 (Tobar, 1991).

Este é um debate que permanece. Não porque a direita não o entenda, mas porque prefere continuar a confundir conceitos e concepções, porque lhes afronta as possibilidades de realização e capacidade de reivindicação do poder local.

 

 

O Poder Local e a Descentralização

 

Todos parecem estar de acordo quanto à valorização do papel do poder local e o mesmo acontece quando falamos de descentralização. Em teoria, há uma espécie de consenso quanto à necessidade de descentralizar. Vários autores consideram mesmo que “é difícil pensar em qualquer outro consenso constitucional – talvez excepto mesmo a democracia”5(Treisman, 2007)

Apesar de um consenso aparentemente generalizado em torno da descentralização e da importância do poder local, a prática é contrária. Para além da ingerência na autonomia do poder local, de que é exemplo a lei de financiamento, a imposição da recente reforma administrativa, sem a consideração efectiva da opinião das autarquias locais, revela o carácter centralizador da política de direita. Por outro lado, assistimos a processos de desresponsabilização do Estado central, em matérias fundamentais como a saúde e a educação.

Contudo, a política de direita tem privilegiado a passagem de competências para organismos que estão sob a sua dependência, ao mesmo tempo procura interferir na gestão diária das autarquias em áreas chave como a política de pessoal, o horário de trabalho, financiamento e restrições orçamentais, receitas fiscais, etc.

De facto, “a descentralização, liberta das perversões conhecidas, implica a aproximação aos centros de decisão em relação à população, favorece uma participação mais larga e frequente, pode contribuir para fazer o cidadão (re)ganhar o hábito de intervir nos assuntos que lhe dizem respeito”6(Sá, 1989). Contudo, não podemos iludir que “por detrás da defesa da descentralização podem existir motivos que não são nobres e progressistas, mas outros bem menos recomendáveis: interesses instalados, caciquismo local, relações e aparelhos não democráticos que procuram a sua legitimação e conservação assumindo poderes descentralizados e a defesa localista, de interesses privados especulativos no sector urbanístico ou na construção civil ou outros que esperam influenciar centros administrativos e outros centros de interesses organizados”7(Sá, 1989).

 

 

A Regionalização

 

A regionalização é, porventura, o maior exemplo de que, para os partidos da política de direita, a descentralização não passa das intenções, sobretudo quando exercem a governação.

Ainda recentemente, Rui Rio, ex-presidente da Câmara Municipal do Porto, “que fez campanha contra a regionalização em 1998, subiu ao palco para defender com entusiasmo a importância do país avançar naquele caminho. (…) e disse que «a regionalização podia ser talvez o maior abanão para alterar o sistema político»”8. É assim a perspectiva do tudo ou nada, claramente determinada por um taticismo pessoal.

Naturalmente que a regionalização não será o alfa e o ómega dos problemas nacionais, mas a sua concretização, cumprindo com a Constituição, será um enorme contributo para a descentralização administrativa, a eliminação das assimetrias regionais e um desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional.

 

 

Democracia e Participação

 

A concepção do poder local enquanto conquista do 25 de Abril é indissociável de uma gestão democrática das autarquias. E, ao contrário do que sucede com as concepções liberais e burguesas em que a democracia é reduzida ao seu caracter formal e de legitimação institucional das elites e ideias dominantes, uma verdadeira gestão democrática é inseparável de uma ampla e permanente participação popular.

Nas autarquias, desde há uns anos a esta parte, assistimos à institucionalização de modelos padronizados de participação, de que os designados “orçamentos participativos” são o exemplo mais conhecido. Métodos e modelos que apenas visam legitimar uma concepção de que os cidadãos participam nas decisões da “cidade”, decisões essas que estão confinadas às agendas da própria gestão.

Ao contrário de tais concepções, temos a visão de que mais do que os chamados “orçamentos participativos” necessitamos de decisões participadas, quer sejam documentos estruturais para a gestão quer sejam decisões mais pontuais, procurando que essa participação seja a mais descentralizada possível.

 

 

As Freguesias

 

A freguesia é a autarquia local da organização democrática do Estado que se encontra mais próxima das populações.

A reforma administrativa territorial autárquica nada mais significou do que um processo de liquidação de centenas de freguesias. A pretexto do memorando de entendimento com a troika, da redução da despesa do Estado e da readaptação do mapa administrativo do País, a extinção/agregação das freguesias - à semelhança do que sucedeu com outros serviços públicos - insere-se num processo mais amplo de reconfiguração do Estado, redução do número de trabalhadores, concentração e centralização de serviços. Tal medida significou a eliminação de centenas de eleitos autárquicos, maior afastamento entre eleitos e eleitores, maiores dificuldades na resposta aos problemas e anseios das populações, desvirtuamento do papel e função das freguesias na organização do poder local, entre outras perdas.

A reforma administrativa imposta pelo governo, sem consideração da opinião das freguesias e das populações, em nada resolveu – antes agravou – os principais problemas com que se confrontam os autarcas de freguesia.

Tal reforma significou assim: o reforço da concentração e centralização de poderes com a agregação de freguesias e menos democracia, com a eliminação de milhares de eleitos locais.

De facto, tal como referiu Álvaro Cunhal, “o Poder Local, tal como o estatui a Constituição, é uma afirmação do caracter progressista , avançado, eminentemente popular do regime democrático instaurado com a revolução portuguesa”9(Cunhal, 1981).

 

Daniel Vieira

 

1 Costa, Carlos. Poder Local no Portugal de Abril. Conferência do PCP sobre o Poder Local. Almada, 18 de Outubro de 1981. P. 34

2 Constituição da República Portuguesa. Titulo VIII – Poder Local. Capitulo I. Artsº 235, 236 e 237.

3 Sá, Luís. Introdução à Teoria do Estado. Lisboa, Caminho, 1986. Págs 127 e 128.

4 Tobar, Federico. O conceito de descentralização: usos e abusos. Planejamento e políticas públicas5, 1991: 31-51.

5 Treisman, Daniel. The architecture of govermment: rethinking political decentralization. Cambridge University Press, 2007. P. 1

6 Sá, Luis. Regiões Administrativas. O Poder Local que falta. Caminho, Lisboa, Junho de 1989. P. 34

7 Ibidem.

8 António Costa e Rui Rio juntos na defesa da regionalização, in Público online, 17 de Janeiro de 2015.

9 Cunhal, Álvaro. Poder Local no Portugal de Abril. Conferência do PCP sobre o Poder Local. Almada, 18 de Outubro de 1981. P12