A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 64.º, garante que: “todos têm direito à proteção na saúde e o dever de a defender e promover” e explicita que o direito à protecção da saúde é realizado “através de um Serviço Nacional de Saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”.

Tem sido alicerçada nesses dois pressupostos que a população do concelho tem travado uma luta constante pelo cumprimento desse seu direito, defendendo-o, lutando por um Serviço Nacional de Saúde (SNS) que cumpra o objectivo para que foi criado em 1979.

Nos últimos anos, vivendo-se períodos de enorme crise económica e social, com uma parte significativa da população a ver condicionado, por opções politícas e visões economicistas, o seu acesso aos cuidados de saúde prestados através do SNS, mais importante se tornou a defesa de um SNS forte e solidário.

Tem sido uma luta constante, aquela que tem vindo a ser realizada no concelho de Sintra, onde se realça a forma como a população se envolve e participa. Uma luta que foi, é, e continuará a ser realizada, até que todas as valências necessárias a uma prestação de cuidados de saúde dignos sejam uma realidade, de modo a que um adequado nível de prestação de cuidados de saúde contribua e promova, mais equilíbrio e a coesão social.

Uma luta que podemos dividir em três linhas prioritárias de reivindicação/intervenção:

  • Pela cobertura total das necessidades dos centros de saúde em termos de médicos de família, enfermeiros e demais pessoal auxiliar e administrativo.

  • Pelo funcionamento, em regime de serviço público consistente, das unidades de saúde existentes e a construir.

  • Pela construção de um hospital público no concelho de Sintra.

 

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I - Caraterização do Concelho

Estando na presença do segundo concelho mais habitado de Portugal, poder-se-ia pensar que o nível de resposta, em termos de prestação de cuidados de saúde, seria proporcional à sua dimensão populacional. Não é o caso.

Vejamos exemplos práticos da realidade do quotidiano dos utentes dos serviços de saúde no concelho de Sintra.

O Hospital Amadora-Sintra abrange uma área de intervenção extensa, com enorme densidade populacional, situação que acarreta consequências dramáticas ao nível da celeridade na prestação dos seus serviços, sendo constantes as situações de sobrelotação e intermináveis horas de espera para aqueles que recorrem ao serviço de urgência. Os elevados tempos de espera no atendimento são incompatíveis com a situação de urgência requerida por quem se desloca a uma urgência hospitalar. Não é aceitável que existam testemunhos de utentes que esperaram entre 10h a 12h para serem atendidos.

Esta situação não é nova nem sequer se poderá dizer que é pontual. Quando se projecta a construção de um hospital tendo como público alvo um limite de 350.000 pessoas e poucos anos passados esse limite ultrapassa os 650 mil, facilmente se conclui que alguma coisa teria de falhar.

Por outro lado, no que concerne aos centros de saúde, a realidade sentida nas experiências do dia a dia é muito má.Tomemos nota dos seguintes números oriundos de um estudo da Câmara Municipal de Sintra:

 

Fonte CMS Estudo de Setembro de 2014

Caracterização da Saúde no concelho de Sintra

Utentes inscritos

Frequentadores dos centros de saúde

Com médico de família atribuído

Sem médico de família

Não frequentadores

410 882

362 465

249 074

113 391

48 417

Percentagens

88,22%

60,62%

27,60%

11,78%

Número de efetivo de utentes sem médico de família

161.808

39,38% do total

Número de médicos necessários para o concelho

216

Número de médicos em funções à data do estudo

145

Número de médicos em falta

71

 

Perante estes dados reais, não nos podemos admirar com exemplos diários de défice de resposta no atendimento aos doentes por parte dos serviços.

Naturalmente que como consequência da falta de resposta nos centros de saúde, o resultado imediato é a deslocação dos utentes para a urgência hospitalar, criando dessa forma o efeito bola de neve que contribui para a falência no atendimento por parte dessa unidade de saúde.

Conclui-se portanto que o desinvestimento na estrutura de cuidados de saúde primários leva, a jusante, a situações de falta de capacidade de resposta dos hospitais, contribuindo desse modo para o descrédito do sistema.

Perante tão flagrante e inequívoca falha estrutural, não seria de esperar outra coisa que não fosse o envolvimento dos utentes na defesa dos seus direitos.

 

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II - Historial de luta e intervenção cívica

Embora existam registos de intervenções, levadas a cabo por utentes, em períodos anteriores a 2007, não será exagerado pensar-se que foi a partir dessa data que, de forma mais consistente e organizada, se iniciaram acções de esclarecimento e mobilização da população do Concelho em torno da defesa do seu direito a uma saúde pública constitucionalmente consagrada.

A partir de Fevereiro de 2008, com a constituição, em acto público, realizado nas instalações dos Bombeiros Voluntários de Queluz, da Comissão de Utentes da Saúde do Concelho de Sintra, (CUSCS) foi possível criar uma frente de luta organizada, mobilizadora e credível.

Essa realidade possibilitou novas formas de luta e permitiu intervir de forma consistente em muitas frentes.

 

São exemplo dessas intervenções:

  • A luta pela construção dos centros de saúde de Massamá e São Marcos.

  • As vigílias junto do Centro de Saúde de Belas onde, com o apoio da população, foi possível fazer a denúncia das condições indignas em que se atendiam os utentes, contribuindo dessa forma para que as mesmas fossem alvo de melhorias significativas.

  • A luta pela construção de novos centros de Saúde em Queluz, Belas, Agualva, Algueirão Mem-Martins, Sintra e Rio de Mouro.

  • As iniciativas junto do Hospital Amadora Sintra para as quais, com a participação dos utentes do concelho da Amadora, se mobilizaram centenas de pessoas que, por três anos consecutivos, realizaram "marchas" e concentrações pela exigência da construção de um hospital público no concelho de Sintra.

 

Uma luta onde não faltaram plenários, sessões de esclarecimento, debates e reuniões com utentes, responsáveis autárquicos e de agrupamento de centros de saúde. Todos essas acções, no seu conjunto, foram a pedra de toque das intervenções que foram sendo realizadas ao longo de quase uma década.

Em 2015, e durante três meses, realizou-se uma recolha de assinaturas por todo o concelho, onde se apelava aos utentes para subscreverem um abaixo assinado exigindo que o concelho fosse dotado das condições constitucionais quanto à prestação de cuidados de saúde.

Foi um sucesso!

A adesão das pessoas ultrapassou todas as expectativas. Contactaram-se milhares de pessoas e instituições; nos centro de saúde, associações de reformados, bombeiros, na via pública, nos mercados, nas feiras, nos grandes espaços comerciais, recolheram-se mais de 10 mil assinaturas que foram entregues no Ministério da Saúde.

Foi um sucesso pela adesão mas, principalmente, pela intervenção e pelos contactos que foram realizados. Foram ouvidos testemunhos de vida real. Testemunhos de quem vive uma realidade, de quem passa dificuldades e de quem não merece ser tratado de forma desigual por ter menos condições económicas. O acesso aos cuidados de saúde não pode, nunca, ser condicionado por razões económicas.

 

 

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III - Razões para continuar a lutar

Tem sido uma luta de todos para todos. A luta de uma população que o faz por um direito a que tem direito. Uma luta que tem surtido efeito e tem trazido resultados .

Nalguns casos foi possível contribuir para que processos pendentes fossem concluídos. Encontram-se nesse lote os centro de saúde de Massamá e São Marcos, a unidade de urgência básica de Algueirão Mem-Martins e a manutenção do funcionamento das extensões de saúde do Sabugo e D.ª Maria. Foi igualmente por força da intervenção da população que, em Rio de Mouro, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) se viu obrigada a encontrar solução na necessidade de contratar mais médicos quando os serviços desse centro de saúde entraram em ruptura por défice de resposta às solicitações dos utentes.

Sim é verdade! Tem sido uma luta ardorosa mas muito desigual, especialmente nos últimos anos onde se verificou um agravamento da situação.

A saber:

  • Passaram a ser pagos actos de saúde antes gratuitos e aumentaram-se as taxas moderadoras;

  • O preço dos medicamentos sofreu alterações, ficaram mais caros para os utentes, por força da diminuição dos valores de comparticipações por parte do estado;

  • Cortes no apoio ao transporte de doentes;

  • Degradação e encerramento de serviços de saúde, sendo que no caso do centro de saúde de Belas os utentes foram "empurrados" para o centro de saúde da freguesia vizinha de Monte Abraão, com as implicações inerentes a uma deslocação de mais de 45 minutos;

  • Dificuldades crescentes no acesso a meios complementares de diagnóstico;

  • Mais tempo de espera por intervenções cirúrgicas;

  • Detioração das instalações dos centros de saúde do concelho inadaptados para essa função, sem que se vislumbre, a curto ou médio prazo, qualquer alteração significativa dessa realidade por parte da ARSLVT;

  • Continuação da saga de mais de 20 anos de espera pela construção de um hospital público no concelho de Sintra apesar de, durante todo esse tempo, não terem faltado promessas de construção por parte de diversos ministros da saúde e responsáveis autárquicos;

  • Ausência de sensibilidade, mas fundamentalmente, a opção política por soluções que em nada contribuíram para a resolução do problema relacionado com a falta de médicos e enfermeiros nos centro de saúde.

É uma realidade amarga, aquela que se vive no concelho de Sintra. Uma realidade que não pode ser escamoteada, nem mascarada, com tentativas absurdas de municipalizar os serviços de saúde, contribuindo dessa forma para aumentar a desresponsabilização daqueles a quem cabe a tarefa de criar as condições, pelo menos mínimas, para os utentes do concelho.

Qualquer tentativa para resolver situações pontuais, não passarão de "pedradas no charco" no oceano de malfeitorias que o SNS sofreu nos últimos anos, com especial relevo para os últimos quatro, da responsabilidade do PSD/CDS-PP e do ministro Paulo Macedo.

Num claro ataque aos direitos constitucionais dos portugueses, nesse período, tudo foi feito para denegrir a imagem e o crédito do SNS perante os utentes da saúde do concelho de Sintra.

A manutenção do reduzido número de profissionais em serviço, não contratando os que faltam para a realização das tarefas necessárias, o recurso aos contratos de prestação de serviços de médicos, enfermeiros e outros técnicos de saúde e a sua contratação através de empresas de trabalho temporário, foram medidas que contribuíram para a degradação do Serviço Nacional de Saúde nas unidades de saúde do concelho, com a clara intenção de o desvalorizar aos olhos dos Sintrenses, com o objectivo de, gradualmente, os utentes recorrerem ao sector privado através dos famigerados seguros de saúde.

Não é admissível que a saúde dos portugueses seja prejudicada por uma gestão que não contrata os profissionais de saúde em falta, que transfere cada vez mais custos de saúde para os utentes e ao mesmo tempo "entrega" vários sectores de saúde a grandes grupos económicos e financeiros.

Como consequência, Portugal foi em termos percentuais o país onde mais cresceram as despesas das famílias com o acesso a entidades privadas, na área da saúde, quando comparadas com os restantes países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).

Essa não poderá ser uma opção! Essa não será certamente a solução com que os utentes de Sintra estarão de acordo. Pelo contrário, depois de todos estes anos, de todos os exemplos que referimos e vivemos, não temos dúvidas: a defesa do SNS é um desígnio que os utentes de Sintra não repudiarão.

 

António Carrasco