A contratualização no Quadro Comunitário de Apoio (QCA) III

No quadro dos fundos comunitários, o desenvolvimento do conceito de contratualização (1) entre a administração central e a administração local teve um interessante marco no QCA III (ciclo de programação compreendido entre 2000 e 2006), protagonizado na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDR-LVT) através do Programa Operacional Regional de Lisboa e Vale do Tejo (PORLVT) que contratualizou com as Entidades Intermunicipais (EIM) a gestão de uma parcela dos seus fundos, quase 300M€. Esta dotação correspondeu então a 19,8% dos fundos alocados ao Programa Operacional Regional (POR), assim repartidos: Junta Metropolitana de Lisboa - 93M€; Comunidade Urbana da Lezíria do Tejo - 70M€; Comunidade Urbana do Médio Tejo - 64M€; Associação de Municípios do Oeste - 71M€.

Cada uma das entidades constitui-se como Organismo Intermédio (OI) do PORLVT, após o reconhecimento de um Plano Estratégico desenvolvido por cada - que serviu de base à celebração de um contrato-programa cujo montante foi essencialmente consignado a projetos de interesse municipal, enquadrados e determinantes para cada estratégia aprovada sub regionalmente, no quadro de uma delegação/desconcentração de responsabilidades da entidade pública regional nas EIM do território da CCDR-LVT (então presidida pelo engenheiro António Fonseca Ferreira).

Tomando aleatoriamente como exemplo a operacionalização deste processo na Lezíria de Tejo, chegou-se a 2006, com a gestão administrativa, técnica e financeira das Medidas 1,2 e 3 do Eixo 1 do PORLVT na responsabilidade da Comunidade Urbana da Lezíria do Tejo (CULT), com um investimento de interesse municipal aprovado de 106M€, compreendendo 151 projetos.

 

No QREN

Posteriormente, na preparação do ciclo de programação 2007-2013, no Quadro de Referência Estratégica Nacional (QREN), com a influência de académicos associados ao estudo das questões do desenvolvimento regional, como alguns com responsabilidades governativas neste domínio (Professores Francisco Nunes Correia, João Ferrão e Rui Baleiras), atentos os bons resultados das contratualizações no QCA III, o QREN apontou para a replicação do modelo em todo o território nacional, ajustando-o aos objetivos acordados com Bruxelas para o novo ciclo de programação, ousando dar uns tímidos passos em direção à descentralização de responsabilidades, embora num modelo muito condicionado aos normativos comunitários sobre a atribuição e gestão de co-financiamentos, envolvendo quase um terço da dotação de cada POR do continente. Paralelamente, desencadeou-se um processo de revisão da regulação da constituição das Associações de Municípios, polémico e criticável nalguns aspetos, que desembocou na criação das Comunidades Intermunicipais (CIM) e Áreas Metropolitanas (AM), cobrindo todo o território nacional numa base territorial NUTs (Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos) III, consignando atribuições às mesmas na gestão do QREN.

Também neste quadro, importa sublinhar o dinamismo autárquico através das Associações de Municípios que vinham há anos a desenvolver processos de planeamento estratégico e de programação intermunicipal nalgumas parcelas do território nacional (independentemente do seu formato e/ou designação legal/formal), algumas mesmo há mais de duas décadas, como foi o caso da Associação de Municípios de Distrito de Beja quando desencadeou o Plano Integrado de Desenvolvimento do Distrito de Beja (PIDDBE).

Foi assim fácil às Entidades Intermunicipais responderem ao desafio colocado pela apresentação aos POR dos Planos Territoriais de Desenvolvimento (PTD), enquanto instrumento para a contratualização no QREN. Este dinamismo veio a revelar-se determinante para o sucesso que lhes é reconhecido nas responsabilidades que assumiram na gestão dos fundos, não somente pela elevada contribuição que deram para a execução dos Programas mas também pelo seu contributo na observância de objetivos e alcançar de metas, sem o qual os POR correriam sérios riscos de devolução de verbas – não obstante os enormes constrangimentos com que as EIM foram confrontadas, como pela avocação de competências ou pela complexidade da Descrição de Sistema de Gestão e Controlo (DSGC) e marcação cerrada que a Inspeção Geral de Finanças (IGF) lhes moveu, ao invés do que acontecia com outros OI.

 

Política de Cidades

No QREN, acompanhando o processo de contratualizações foram ensaiadas outras formas instrumentais e organizacionais associando o território e as entidades regionais à aplicação integrada dos fundos. São de sublinhar as relacionadas com a Política de Cidades, com a candidatura das Parcerias para a Regeneração Urbana (PRU) e das Redes Urbanas para a Competitividade e Inovação (RUCI), envolvendo cerca de um quinto das dotações globais de cada POR do continente, onde as autarquias assumiram um papel preponderante, como beneficiárias ou como promotoras e fomentadoras doutros projetos de parceiros públicos e privados envolvidos nas parcerias.

Ainda no quadro das Estratégias de Eficiência Coletiva (EEC) uma nota sobre o PROVERE, Programa de Valorização Económica de Recursos Endógenos - instrumento destinado a territórios com menores oportunidades de desenvolvimento por causa de baixa densidade, com o intuito de estimular iniciativas que deem valor económico a recursos endógenos do território, sejam recursos naturais, património histórico ou saberes tradicionais - cujo processo de constituição e dinamização foi fortemente apoiado em todo o território nacional pelos municípios e pelas CIM, destacando-se o trabalho desenvolvido no Norte, onde o POR foi estruturado com um eixo específico para acolhimento das várias EEC reconhecidas neste enquadramento.

 

A contratualização no Portugal 2020

Quando se esperava que o novo ciclo de programação 2014-2020 Portugal 2020 desse sequência e valorizasse a territorialização das políticas públicas de desenvolvimento regional, o trabalho de parceria e a dinâmica autárquica reveladas através da preparação de Planos Estratégicos promovidos pelas EIM para o respetivo território, é-se confrontado com um Acordo de Parceria cujos termos estão longe de corresponder às expectativas, dando lugar a um complexo processo para a criação dos instrumentos operacionais que em cada POR assegurem os objetivos apontados na programação regional e naqueles Planos, bem como noutras Abordagens Integradas de Desenvolvimento Territorial (AIDT) que supostamente seriam privilegiadas neste ciclo de programação.

Em vez do PTD do QREN foi exigido às EIM uma Estratégia Integrada de Desenvolvimento Territorial (EIDT) participada por todos os atores do território, públicos e privados, enquanto documento prospectivo do desenvolvimento territorial, nas componentes da coesão territorial e social e da competitividade territorial e inovação, documento de enquadramento dos projetos e ações estruturantes cuja concretização passa pelo apoio dos Fundos Europeus Estruturais de Investimento (FEEI). Aceitável até aqui, mas o mais difícil estava a caminho. Mudança de tutela, reinterpretação dos termos do Acordo de Parceria e clarificação de conceitos quanto a políticas de desenvolvimento territorial determinaram uma maior morosidade e complexidade no processo, com as figuras dos Pactos para o Desenvolvimento e Coesão Territorial (PDCT) e dos Investimentos Territoriais Integrados (ITI) - num quadro mais vasto doutras Abordagens Integradas de Desenvolvimento Territorial (AIDT), orientados de forma mais restritiva do que a perspectivada nas EIDT, no fundo substituindo os PTD, num formato muito questionável, ignorando uma boa parte do trabalho muito responsavelmente desenvolvido pelas EIM em estreita interação com os parceiros proeminentes no respetivo território.

Como se não bastasse, toca de sujeitar as EIM e os membros dos seus órgãos a uma despropositada prova oral, no âmbito da avaliação das candidaturas, quer dos Pactos Territoriais quer dos ITI, conduzida por tutores nomeados pela tutela dos FEEI e membros das Autoridades de Gestão dos PO, sem que o seu mérito relevasse significativamente para o acesso aos exíguos fundos em concurso.

Acenaram com o doce da captura doutros meios financeiros para além dos oriundos do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), libertando também umas parcas dotações do Fundo de Coesão (FC), do Fundo Social Europeu (FSE) e do Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER), numa filosofia multifundos – que nos POR se contém no acesso ao FEDER e ao FSE, sendo que a participação nos outros fundos atrás referidos será objeto de acordo com os PO Temáticos que os gerem [Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (PO SEUR), Programa Operacional Inclusão Social e Emprego (PO ISE) e Plano de Desenvolvimento Rural (PDR)]. Esta filosofia multifundos aparentar-se-ia interessante não fora o caso de, por esta via, assistirmos a uma grosseira tentativa de transferência de novas responsabilidades e encargos para a administração local, algumas das quais de muito duvidoso enquadramento nas respetivas atribuições e competências legais, tanto no respeitante aos municípios como às EIM.

O mais complicado estaria ainda por surgir: a parte financeira da nova contratualização e o nível de delegação de competências proposto.

Quanto à primeira, constata-se uma afetação de verbas FEDER no Portugal 2020 na ordem dos 526M€ (2) que, com o aditar das dotações ainda não contratadas em três EIM do Norte, ainda ficará muito aquém do valor contratualizado no QREN (1.577M€), garantidamente inferior a metade! Considerando os demais fundos (FC, FSE e FEADER) o valor ascenderá a sensivelmente metade do valor candidatado pelas EIM, cujo montante foi de 2.280M€ - o que quer dizer que mesmo levando em conta todas as dotações propostas para contratualização, oriundas dos vários fundos, estaremos ainda aquém do valor contratualizado com FEDER no passado recente. Nas regiões de convergência e Área Metropolitana de Lisboa, o quadro comparativo entre o QREN e o Portugal 2020, considerando todos os fundos, traduz-se no seguinte: Alentejo - 256M€/160M€; Centro - 533M€/354M€, AML - 51M€/89M€; Norte - 713M€ /281 M€ (2).

Quanto à segunda, constata-se no essencial a replicação do modelo e nível de delegação de competências observado no QREN após aditamento ao clausulado do contrato com a avocação de competências muito relevantes pelas Autoridades de Gestão, como a aprovação de operações e a aprovação de despesa – ao arrepio das expectativas das CIM que, face às orientações da Comissão Europeia para a contratualização com as Autoridades Urbanas, muito fundamentadamente, contavam com a aplicação de regras semelhantes, mais próximas do modelo inicial consignado no Contrato de Delegação de Competências com Subvenção Global dos ciclos de programação anteriores - obviamente que salvaguardadas todas as questões legais e formais, designadamente a segregação de funções que no QREN, por insuficiência de orientações, não foi tida na devida conta, num ou outro caso particular.

Continuaremos pois com as EIM enquanto entidades tarefeiras dos PO, prestando serviços burocráticos a muito baixo custo, com uma parcela muito expressiva das dotações sujeitas a mapeamento previamente homologado pela administração central, com algumas tipologias de investimento na alçada do regime dos apoios reembolsáveis ou da partilha de poupanças com reembolso parcial e quase que obrigadas a acomodar nas dotações dos ITI projetos da administração central e doutras entidades. Enfim, desviadas do essencial da estratégia delineada para o seu território no Plano Estratégico (EIDT) e no Pacto Territorial, questão que urge reponderar em sede de reprogramação dos Programas Operacionais, mediante prévia renegociação do Acordo de Parceria que, agora sem Troika, urge promover.

 

Centros urbanos estruturantes – uma nova contratualização

Por sua vez, a Política de Cidades aparece surpreendentemente numa versão de última hora do Acordo de Parceria, travestida com roupagens complexas, mediante instrumentos de planeamento e programação para acesso aos fundos para a regeneração e revitalização urbanas um pouco à margem dos instrumentos e regime jurídico nacional que regula esta matéria. Os Planos Regionais de Ordenamento do Território (PROT) e os Planos Municipais de Ordenamento do Território (PMOT: PDM, PU e PP) são insuficientemente considerados, tal como as figuras das Áreas de Reabilitação Urbana (ARU) e das Operações de Reabilitação Urbana (ORU) consignadas no Regime Jurídico da Regeneração Urbana (RJRU), decreto-lei 307/2009, de 22 de outubro).

Extinguiram-se as PRU (Parcerias para a Regeneração Urbana) e as RUCI (Redes Urbanas para a Competitividade e a Inovação) do QREN, cuja regulamentação específica foi objeto de profunda alteração para que as operações pudessem correr segundo termos e prazos aceitáveis, e aparecem, num conceito mais largo e supostamente integrado, os Planos Estratégicos de Desenvolvimento Urbano Sustentável (PEDUS), os Planos de Ação para a Reabilitação Urbana (PARU), os Planos de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS) e os Planos de Ação Integrados para Apoio a Comunidades Desfavorecidas (PAICD) - claramente mais e desnecessariamente complexos, burocráticos, sem garantias e perspetivas de sucesso, pelo menos durante o período da programação, antevendo-se um atraso na operacionalização dos mesmos com consequências na execução física e financeira dos programas e nas suas metas e objetivos.

Nas poucas oportunidades de discussão do Acordo de Parceria muito se bateram os municípios pela absoluta pertinência da consideração das questões da reabilitação e revitalização urbanas, aliás em linha com as orientações da CE para as Ações Integradas de Desenvolvimento Urbano Sustentável (AIDUS), para as quais os PO teriam de consignar dotações mínimas, que não pela via de uma enviesada utilização das dotações consignadas à eficiência energética, como o Governo bastas vezes deu conta.

Na fase de aprovação dos Programas Operacionais, no quadro da operacionalização do Portugal 2020, foi então reconhecida e traduzida a importância da regeneração e revitalização urbanas com a introdução nos POR de um eixo específico, o eixo urbano, com dotações dirigidas a centros urbanos estruturantes, cuja gestão caberá às Autoridades Urbanas segundo conceito próprio, como tal consignado na regulamentação comunitária (conceito adaptado no Portugal 2020, enquanto centros urbanos estruturantes ou de nível superior, como tal listados nos PROT). Estas dotações, num montante global de FEDER 797M€ (para todos os POR do continente exceptuando o Algarve), conjugam com outras de outros eixos de cada PO, afetas a Prioridades de Investimento (PI) que concorrem (tal como no eixo urbano) para o objetivo financeiro das AIDUS, às quais acederão os demais municípios, através de planos de ação específicos como os PARU e os PAICD, ambos na escala municipal, e o PMUS na escala da NUT III, promovidos pelas EIM.

Por ora mantém-se em curso o processo de avaliação das candidaturas dos centros urbanos estruturantes cujas Autoridades Urbanas tencionam contratualizar com os POR as PI inscritas no eixo urbano. Este processo de delegação de competências assenta nos PEDUS, selecionados em regime concorrencial nos termos de aviso público que encerrou a 30 de setembro. Por outro lado, espera-se que a breve trecho sejam publicados novos avisos, dirigidos aos demais municípios, para os PARU e para os PAICD. Entretanto corre o aviso dirigido às entidades intermunicipais (AM/CIM) para apoio aos PMUS, na respetiva base territorial.

Espera-se que as Autoridades Urbanas selem ainda este ano com as Autoridades de Gestão dos PO continentais o acordo de delegação de competências com subvenção financeira associada, segundo as orientações expressas pela CE (3), consignando ampla autonomia àquelas, designadamente para a seleção, aprovação e acompanhamento das operações dos programas de ação dos diferentes instrumentos do PEDUS.

Tanto trabalho, tanto dinheiro dispendido com consultadorias, boas e empenhadas estruturas de recursos humanos e outras nos PO, nas CCDR e nas EIM que merecerão maior e melhores atenções, assim os verdadeiros objetivos da territorialização na gestão e aplicação dos FEEI se ajustem à realidade do território e às mais legítimas e fundadas aspirações dos seus cidadãos, se ajustem à coesão territorial e social, justa e legitimamente reclamada por todos quantos veem cada vez mais distante a aproximação a níveis de desenvolvimento e conforto prometidos. Fundamentos para a revisão do Acordo de Parceria, fundamento para que um novo Governo olhe para o atual ciclo de programação dos fundos com o empenho e racionalidade que se justifica.

 

Fernando Caeiros

 

 

(1) Associação, pela autoridade de gestão e por período determinado, de entidades públicas ou privadas à gestão técnica, administrativa e financeira da respectiva intervenção operacional, mediante a celebração de contratos-programa homologados pelo membro do Governo competente. As entidades associadas à gestão passam a constituir, através da contratualização, organismos intermédios. Vide: DL 54-A/2000, 36.º, 1.

(2) A esta data está acordada a contratualização com as EIM de 885M€, ainda sem o apuramento dos montantes a contratualizar com três da região Norte (Área Metropolitana do Porto, CIM do Minho Lima e CIM do Tâmega e Sousa).

(3) Guide lines, EGESIF_15-0010-01, 18/05/2015 - Orientação para os Estados-Membros sobre Desenvolvimento Urbano Sustentável Integrado (Artigo 7º do Regulamento FEDER).

 

PRU1CH

Na imagem: exemplo da reconversão dos antigos armazéns municipais de São Paulo para o designado Quarteirão das Artes, em Almada, numa operação promovida pela autarquia.

Fonte: http://www.porlisboa.qren.pt/np4/626.html