Quem nunca ouviu falar de «petróleo verde»? Julgo que quase todos conhecem esta expressão quando a mesma se refere à produção florestal e à riqueza que origina para o nosso país.

Encontramos o desenvolvimento desta expressão no século XX quando se cria a ideia de que Portugal é, a par da Suécia e da Finlândia, um dos países detentores do «petróleo verde».

No século que vai até às vésperas da integração europeia, Portugal tinha registado um prodigioso crescimento da sua área florestal: entre 1867 e 1995 a área ocupada pela floresta portuguesa cresceu de 14,1% para mais de 38% do território nacional [1].

O pinheiro foi, no século XX, o instrumento da ditadura para a realização do seu programa de fomento florestal, avançando para as terras comunais e para os baldios [2], abrindo caminho para a implantação das multinacionais ligadas à celulose. A conflitualidade atinge o apogeu em 1950, com protestos populares e consequente vaga repressiva sobre populações que se viam desapossadas de importantes áreas para o seu sustento [3].

A florestação dos baldios através do Fundo de Fomento Florestal, lançado em 1954, muda vastas zonas do interior: foram plantados cerca de 680 mil hectares com pinhal, procurando dar resposta às indústrias silvo-industriais com a produção de madeira ou exploração de resina, mas abre-se a possibilidade de plantação de eucalipto.

No final dos anos 1950, a Companhia Nacional de Celulose, instalada em Cacia (Aveiro), começa a produzir pasta com o «processo kraft» que aproveitava melhor o potencial do Eucalyptus Globlus; em 1965, os suecos da Billerud AB estão já em Portugal prontos para a sua exploração – dariam origem à Celbi. Até então o eucalipto ocupava uma área inferior a 100 mil hectares, contra 1.2 milhões de hectares do pinheiro-bravo; hoje é a espécie hegemónica com 812 mil hectares, contra 714 mil do pinhal [4].

A entrada de Portugal na CEE assinala o aparecimento do «sonho florestal português», que mais não foi do que a liberalização da plantação de espécies florestais lucrativas, em detrimento de espécies autóctones de mais baixa rentabilidade. As espécies eleitas para o alicerçar foram o eucalipto e o pinheiro, mas a primeira superou a segunda, tornando-se hegemónica, dado que as grandes celuloses apostaram fortemente na aquisição de terras para a plantação de eucaliptos. São dessa época as imagens de soldados da GNR a carregar sobre populações rurais do Norte do País que protestavam contra a «invasão do eucalipto» [5]. Nessa altura o Ministério da Agricultura defendia com unhas e dentes a plantação de eucalipto: Álvaro Barreto, titular da pasta, fora anos antes presidente do conselho de administração da Soporcel e tornaria ao cargo em 1990, pouco depois das gentes de Valpaços lhe fazerem frente.

E como é que se chega à situação actual em que vemos o chamado Pinhal Interior Norte, que muitos designam por «Eucaliptal Interior Norte» reduzido a cinzas?

Nos anos de 1980, o fogo na floresta não era ainda o terror de hoje – a média anual de área ardida ficava-se pelos 44 mil hectares, contra os 104 mil da década de 2000 ou os 440 mil hectares de 2017.

Entre 1975 até meados deste ano arderam por todo o país uns 4.3 milhões de hectares de área florestal [6], e a ideia de que Portugal estava a ser condenado a ser uma potência florestal na Europa ruiu. O ano de 2017, já considerado um dos piores de sempre em termos de fogos florestais, tornou evidente que Portugal não controla o recurso natural renovável de maior dimensão do País, nem tão pouco consegue compreender qual o impacte negativo que os fogos florestais têm para o PIB.

Em Portugal desenvolveu-se, paulatinamente, uma bomba relógio que agora rebentou e que tem como ingredientes o êxodo rural, a monocultura, a expansão de espécies altamente combustíveis, a incapacidade do Estado agir e planear, a falta de limpeza, o abandono e a negligência. As políticas, erradas, implementadas nos últimos 30 anos para o interior do País estão a revelar problemas que apenas alguns denunciaram, contra a corrente generalizada de que era necessário levar a modernidade liberal ao interior.

Se a floresta portuguesa seguisse o padrão mundial, seria fácil apontar um responsável para o final do sonho: o Estado. Dos quase quatro mil milhões de hectares de florestas existentes no mundo [7], 76% pertencem aos estados: na Europa (excluindo a Rússia), esse valor desce para 51% e em Portugal, só 2 ou 3% das áreas nacionais da floresta estão no domínio público.

A hegemonia dos privados na posse das árvores e dos terrenos em Portugal [8] é um problema dado que torna a gestão florestal impossível, para além de não existir um cadastro preciso (há donos de terras que não sabem que o são e terras de propriedade desconhecida).

Neste mosaico completamente estilhaçado, o pinhal encontra-se moribundo: ou ardeu ou foi invadido por matos e silvas ou está em morte lenta pela acção de pragas, como o nemátodo [9]. A inércia do Estado no combate à morte do pinhal tem sido inexistente. Quase que parece que se pretende não intervir para deixar o território livre de pinhal para posterior plantação de eucaliptal. E o que é que isto significa: apenas 40% da área de pinhal ardida em Portugal mantêm o pinheiro bravo como espécie dominante. 

O eucaliptal foi a solução para as populações que utilizam a floresta como subsistência aos parcos recursos económicos. Senão vejamos: um eucaliptal numa área adequada pode produzir 15 metros cúbicos de madeira por hectare/ano. Ao fim de dez anos, quando se podem fazer os primeiros cortes, um proprietário pode obter um lucro até quatro mil euros por hectare. O pinhal exige 30 anos para crescer e produzir madeira interessante para a indústria. O carvalhal, que fornece madeira a indústrias importantes demora ainda mais tempo. E o montado de sobro, rentável por causa da procura da cortiça, só permite a extracção ao final de 25 anos [10].

Hoje, 28% dos povoamentos florestais nacionais são plantados, muito longe dos 90% das plantações na Irlanda, mas muito para lá dos valores médios na Europa [11].

A monocultura do pinho e depois a do eucalipto criaram as bases para a tragédia actual. O desmantelamento de estruturas do Estado entre 1990 e 2013 contribuiu ainda para agravar toda a situação. Para se ter ideia, e analisando só um parâmetro, actualmente a administração florestal nacional tem 540 trabalhadores, enquanto na Áustria são 1 589, na Grécia são 4 600 e em Espanha são 10 470 [12].

No final do século XX e início do século XXI, Portugal tornou-se o único país da Europa que viu a sua floresta reduzir-se, perder biodiversidade e degradar-se acentuadamente.

No combate aos incêndios a lógica foi sempre a do combate e nunca a da prevenção, gastando-se em média anual cerca de 3,4 euros por hectare na prevenção contra 9,8 euros por hectare no combate ao fogo [13].

Se a solução fosse cortar toda a mancha de eucaliptos ou reduzir o pinheiro bravo, tudo seria facilitado, mas tal não é bem assim dado que o contributo para a economia é muito importante. A indústria florestal na qual se incluem importantes grupos económicos como a Sonae, a Amorim ou a actual Navigator Company (ex-Portucel e Soporcel), representa 12% das exportações nacionais e, na fileira do pinho, é fonte de rendimentos de centenas de pequenas empresas e de dezenas de milhares de postos de trabalho nas zonas rurais.

O ano de 2003 abriu uma nova era em Portugal: surgiram os grandes incêndios que só conhecíamos quando víamos imagens de televisão de incêndios na Califórnia ou na Austrália. A vulgarização destas catástrofes tem a seguinte cronologia: 2003 (arderam 425 mil hectares e morreram 21 pessoas), 2005 (arderam 339 mil hectares) e 2017 (arderam 440 mil hectares e morreram mais de 100 pessoas).

Depois da astronómica fatura de 611 milhões de euros com os fogos de 2003, as perdas materiais chegaram aos 757 milhões de euros nos incêndios de 2005 o que, segundo os dados recolhidos pelo ICNF, continua a ser o maior prejuízo anual económico causado pelos incêndios florestais [14]. Ainda não existem cálculos para 2017.

O problema dos incêndios florestais em Portugal é de acção. Durante muitos anos nem houve a desculpa da falta de consensos entre os diferentes partidos, só quebrados pelo anterior governo PSD/CDS com o Regime Jurídico da Arborização e Rearborização e com a Lei dos Baldios. O que está em causa não é a necessidade de mais legislação, antes a determinação de implementar a muita legislação existente e de assegurar os meios para a sua concretização. Meios técnicos, financeiros e humanos.

Se nada de fizer, tudo será ainda mais grave para as populações do interior do País, fazendo com que quem aí vive pense num velho adágio rural, segundo o qual a floresta dá «despesa ao avô, trabalho ao pai e rendimento ao filho». Será que este adágio corre o risco de desaparecer?

 

Pedro Ventura

(vereador na Câmara Municipal de Sintra)

 

 

Notas:

[1] COELHO, Inocêncio Seita, Propriedade da Terra e Política Florestal em Portugal, Lisboa, Julho de 2002.

[2] PEREIRA, João Santos, O Futuro da Floresta em Portugal, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, s/d.

[3] Vide a obra de Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam.

[4] AA.VV, Inventário Nacional Florestal, SEFDR, 7 Setembro 2010.

[5] Em 1989 houve uma guerra no vale do Lila, em Valpaços. Centenas de pessoas juntaram-se para destruir 200 hectares de eucaliptal, com medo que as árvores lhes roubassem a água e trouxessem o fogo. A polícia carregou sobre a população, mas o povo não se demoveu.

[6] FERNANDES, Paulo e GUIOMAR, Nuno, Os Incêndios como causa de desarborização em Portugal in Researchgate, Março de 2017.

[7] Vide www.fao.org em Global Florest Resources Assessments,

[8] Calcula-se que exista um milhão de proprietários.

[9] A consulta da informação do ICNF (mapa nemátodo da madeira do pinheiro/ enquadramento nacional dos locais de intervenção) em www.ICNF.pt ilustra bem o problema: do Algarve ao Norte do País, praticamente tudo foi afectado por esta praga.

[10] Há experiências em curso no Alentejo através do desenvolvimento de montado regado gota-a-gota que permite antecipar o prazo para exploração de cortiça para menos de metade do prazo habitual.

[11] Vide www.foresteurope.org/docs/fullsoef2015.pdf. A média europeia da floresta plantada situa-se em 9% enquanto em Espanha se situa em 15.8%.

[12] Dados existentes em www.foresteurope.org/docs/fullsoef2015.pdf.

[13] Dados obtidos através da consulta de informação da Autoridade Nacional de Protecção Civil.

[14] Vide www.icnf.pt em relatório de análise dos incêndios florestais e prevenção estrutural.