Introdução
Perspectivas recentes da avaliação do turismo na cidade de Lisboa produzem dois tipos de resultados divergentes e aparentemente com contradições irresolúveis. Um, a questão da sobre-oferta de unidades de dormida, quer hoteleiras, quer em aluguer privado; a outra, a sub-oferta exactamente de camas em unidades hoteleiras e similares.
Esta aparente contradição deriva de realidades que se prendem muito pouco com a pressão do aumento da procura turística, mas antes da distorção do zonamento destas unidades. É natural que as unidades hoteleiras e de alojamento turístico particular tendam a localizar-se nas áreas mais atractivas – normalmente zonas históricas onde se encontram os principais monumentos com ampla divulgação – e esta é uma realidade incontornável. Porém está demonstrado que a procura e ocupação de unidades hoteleiras tende hoje a estender-se ao longo dos corredores que se encontrem bem servidos de transportes públicos e que promovendo uma boa acessibilidade aos centros históricos, potenciam outras realidades.
Notas de duas situações comparáveis a Lisboa
Com a devida distância, quer em termos da pressão, quer em termos do modelo de desenvolvimento, é paradigmática a situação de Veneza em que a existência da linha férrea Veneza-Adriá permitiu o desenvolvimento do turismo ao longo dessa via, com um acesso simples, rápido e relativamente barato ao centro histórico. Vilas com património escasso e relativamente desconhecido, como Adriá, Campanogara ou Campagnalupia, tornam-se assim primeiramente pontos de apoio e num segundo momento mesmo pontos de atracção própria, com a vantagem de descentralizar a ocupação do centro.
É verdade que o descurar dos meios ferroviários em detrimento do desenvolvimento de vias e carreiras rodoviárias, desarticuladas e de bilhéticas desiguais e confusas, aliadas a um privilegiar de vias rápidas, destrói completamente tal possibilidade. Atente-se ao eixo Barcelona-Gavá em que, mau grado a existência da ferrovia, a transformação das ruas principais em autênticas auto-estradas desfeou as localidades, tornou os acessos pedonais entre as duas metades difíceis ou quase impossíveis e em nada potenciou as respostas de centralidades alternativas que se haviam aberto com o projecto Barcelona 92.
Atente-se ainda que na estratégia de turismo na região de Lisboa, as propostas centralidades são servidas pelo modo ferroviário precisamente pelos valores de procura turística já alcançados em detrimento de outras, por vezes com um património histórico, cultural e natural de características mais vincadas. Vejam-se os casos de Mafra e Cascais.
A oferta hoteleira
É amplamente criticável a oferta hoteleira na cidade de Lisboa, fileira onde grande parte da reabilitação urbana está centrada, e onde não existe qualquer estudo prospectivo, pese embora exista uma estratégia de desenvolvimento turístico até 2020. Estratégia, diga-se de passagem, altamente criticável nas suas orientações de expansão. (Plano Estratégico para o Turismo na região de Lisboa 2015-2019 - Posicionar Lisboa num novo patamar de excelência turística; Roland Berger Strategy Consultants, Outubro 2014).
Decorre da definição de centralidades que distorcem o território sem potenciar diferentes realidades, em lugar de definir eixos de distribuição e acessibilidades. Ainda que estas centralidades se pudessem salientar, o concentrar do pólo de interesse turístico no interior da cidade, onde apenas cinco freguesias concentram 94% da nova oferta, desprezando-se essa oferta numa área vasta, onde se torna quase impossível encontrar uma unidade hoteleira.
Distribuição dos novos licenciamentos destinados ao turismo em Lisboa 2014/2015
(dados da Câmara Municipal de Lisboa)
-
Freguesia
N.º de novos licenciamentos
Percentagem
Percentagem acumulada
SANTO ANTÓNIO
10
30,3%
30,3%
AVENIDAS NOVAS
8
24,3%
54,6%
MISERICÓRDIA
7
21,2%
75,8%
SANTA MARIA MAIOR
3
9,1%
84,9%
ARROIOS
3
9,1%
94,0%
BELEM
1
3,0%
97,0%
CAMPOLIDE
1
3,0%
100%
A não existência de uma estratégia urbana de diversificação de pólos de atracção e de oferta de camas, deixando-a ao mero sabor do mercado, tem duas consequências. Primeira, a redução da cidade turística ao centro histórico, sem informação ou orientação digna desse nome para aqueles que procuram outros pontos de interesse – monumentos hoje quase desconhecidos, como os chafarizes da cidade, os parques urbanos, mesmo o aqueduto das águas livres, o Palácio das Necessidades, etc. (isto para mencionar apenas o interior do concelho). Segunda, a tendência para o aumento da conflitualidade entre residentes e turistas, devido à intensa utilização do espaço urbano e seus recursos, como a rede de transportes.
O conflito residentes vs. turistas
O aumento de 9,6% até Junho de 2015 do número de hospedagens na Área Metropolitana de Lisboa – AML (Turismo em números – Turismo de Portugal, Lisboa, Junho 2015 p.8), para perto de 1,6 M turistas - o que tendo em conta os mais de 4 M, para todo o ano de 2014, mostra que este é um turismo ainda com alguma concentração nos meses de Verão (mais de metade das hospedagens verifica-se no segundo semestre) e, tendo em conta as taxas de ocupação comparadas da AML e da cidade, se pode inferir que mais de 90% destas hospedagens se processa no concelho de Lisboa (Observatório do Turismo de Lisboa, dados de Maio de 2015).
Não é necessário um grande esforço de imaginação para se vislumbrar um quadro em que o centro histórico da cidade se vê ocupado durante o Verão por uma espantosa babel, em muito superior ao número de residentes, e para a qual esta área da cidade não está estruturada. A rede viária permanece a mesma, assim como o número de lugares de estacionamento tendo, porém, de dar resposta ao acréscimo de circulação via viaturas alugadas, proliferação de meios de locomoção de turismo (tuk-tuk e afins), diminuição da oferta da viaturas de transporte público durante o mês de Agosto.
O conflito assim gerado, e que apenas não atingiu proporções maiores dada a origem recente do fenómeno, assumiu em outros locais foros de quase guerra aberta, e conduziu, nomeadamente em Barcelona, ao congelamento do licenciamento de novas unidades hoteleiras.
Ici comme à Paris
De acordo com o presidente da Entidade Regional de Turismo, com 540 mil habitantes (e estruturas para 850 mil) para 35 mil turistas dia, num total de 8,4 M de dormidas, Lisboa teria espaço para acolher ainda muitos turistas e faz a comparação com outras cidades, de acordo com a tabela abaixo:
Cidade |
Dormidas (M) |
Lisboa |
8,4 |
Estocolmo |
11,8 |
Barcelona |
17,4 |
Paris |
36 |
Londres |
56,9 |
*dados em Publituris – Agosto 2015; Costa, Vitor; “Turismo a mais ou a menos?”
Porém, estes dados para serem devidamente trabalhados teriam de ter em conta a sazonalidade em que se verificam, o total da população e o que representam estes turistas em percentagem (repare-se que não temos os dados do total de turistas mas tão somente das dormidas) e mais importante ainda a área de distribuição.
Faça-se um pequeno exercício:
Cidade |
Área (Km2) |
População (milhares hab) |
Lisboa |
100,05 |
547 733 |
Estocolmo |
377,30 |
807 301 |
Barcelona |
91,4 |
1 595 110 |
Paris |
105,40 |
2 240 621 |
Londres |
1 579 |
8 416 535 |
Descontando o facto de em Londres a referência ser a área total e não apenas a área da cidade em si, podemos ver que qualquer destas cidades, excepto Estocolmo em que a densidade é muito menor, o total de turistas se dilui muito mais na população. Numa comparação muito básica temos de dormidas por habitante: 15,34 (Lisboa); 14,61 (Estocolmo); 7,40 (Barcelona); 16,06 (Paris); 6,76 (Londres). Colocando Lisboa no patamar mais alto conjuntamente com Estocolmo e Paris, sendo que Estocolmo tem a vantagem de uma maior área de distribuição e Lisboa a desvantagem desta concentração se verificar no centro da cidade.
Nos limites
O artigo referenciado lembra, com pertinência, que os bairros antigos de Barcelona estavam habitados continuamente, o mesmo não acontecendo com Lisboa, em que a paulatina desertificação do centro era uma realidade crescente desde o final dos anos 70. Mas, ao fazer-se uma tal afirmação esquecem-se (ou contrariam-se) os propósitos contidos no programa eleitoral com que a actual maioria venceu as eleições e que visa trazer mais gente para o centro da cidade e proceder ao seu rejuvenescimento. É que manter o tipo de ocupação turística preconizada e aumentar a população simultaneamente não só é desaconselhável, como é a receita certa para fazer conflituar as duas situações.
Perante este quadro, só é possível concluir que o turismo na cidade de Lisboa atingiu já o seu ponto de saturação. Aumentar a oferta neste sector apenas contribuirá para colocar pressão nas infra-estruturas, servir o turista em detrimento do residente e criar as condições ideais para aumentar os focos de tensão e conflitualidade, que são já muito evidentes em relação à utilização dos transportes e que as acções da Carris - aumentando exponencialmente os preços de eléctricos e elevadores e criando linhas exclusivas para turistas - apenas agrava, e que, em último caso só é resolvida com o decréscimo significativo de entradas de novos turistas.
Foi possível assim fazer ressaltar que das actuais 24 freguesias de Lisboa, apenas cinco concentram praticamente a totalidade da oferta turística. Assim como foi possível demonstrar já que mais de 90% das dormidas turísticas se localizam no concelho de Lisboa. E ainda que a concentração de dormidas por habitante só tem paralelo com a cidade de Paris. Inferindo-se que o turismo em Lisboa atingiu os seus limites. Há contudo dois factores ainda a analisar: O poder atractivo da AML e a diluição dos turistas na sua população.
Há mais espaço vital
Pese embora exista na estratégia regional para o turismo até 2020 uma aposta na criação de novas centralidades – Cascais, Sintra, Vila Franca e o Arco Ribeirinho Sul – esta estratégia não é acompanhada com a criação nem de vectores de oferta, que tornassem atractivos outros concelhos – nomeadamente através do conhecimento e valorização do seu património histórico, cultural e natural, fazendo quando possível a sua ligação contextual às ditas centralidades, nem com o desenvolvimento de redes de transportes que interligassem eficazmente as diversas centralidades passando pelos demais concelhos.
No modelo de sociedade em que nos encontramos o interesse pela localização de oferta de camas turísticas é feita à medida da expectativa de um rápido retorno, quer pela localização em pontos de grande procura, quer pelo nicho de mercado que se pode explorar.
Caberia às autoridades o papel regulador (já que do papel orientador se arredaram ou as arredaram), mas até desse algumas se parecem demitir, como se depreende de uma estratégia sectorial que se alicerça, e insuficientemente, no já sobejamente conhecido e publicitado, esquecendo-se de promover uma estratégia de dispersão da concentração turística com as óbvias vantagens:
1 – Promoção do património pouco divulgado, contribuindo para o seu conhecimento e preservação;
2 – Aumento da capacidade de oferta na fileira do turismo;
3 – Evitar a sobre-utilização das infra-estruturas;
4 – Fomentar o aumento da procura.
Com o mesmo raciocínio que foi utilizado vejamos a situação em termos de AML:
Cidade |
Área (Km2) |
População (milhares hab) |
AML |
2 921,90 |
2 821 697 |
Estocolmo |
377,30 |
807 301 |
Barcelona |
91,4 |
1 595 110 |
Paris |
105,40 |
2 240 621 |
Londres |
1 579 |
8 416 535 |
Sendo que verificamos que, grosso modo, 90% das dormidas se situam no concelho de Lisboa poderemos, sem grandes margens de erro, majorar em 0,1 o valor de 8,4 M que possuíamos para Lisboa, obtendo 9,24 M de dormidas. Obteremos assim 3,27 dormidas por habitante, o valor sem dúvida mais baixo para todos os que trabalhámos e que deixa sem dúvida muito espaço para crescimento do turismo em Lisboa.
Em conclusão poderíamos dizer que se o turismo em Lisboa (concelho) atingiu, ou está muito próximo de atingir os seus limites, é contraproducente o licenciamento de mais camas que apenas iriam aumentar a pressão sobre os as infra-estruturas e sobre o recuso espaço potenciando o conflito. O turismo na AML tem potencialidade de absorver o excesso da cidade de Lisboa e ser promotor de desenvolvimento local, assim as estratégias definidas tivessem essas prioridades definidas a vários níveis, coisa que está longe de se verificar.
Carlos A. F. Moura