40 anos depois de Abril

A política de solos e do ordenamento do território, passados 40 anos do 25 de Abril, mantém-se condicionada pelas opções de classe tomadas, bem expressas no quadro legislativo, no que diz respeito nomeadamente à propriedade e ao direito de urbanizar. Este contexto, que retira à esfera pública a capacidade de, verdadeiramente e de forma plena, intervir no território e qualificá-lo, limita também a resolução de problemas concretos, no essencial já herdados do fascismo pelo Poder Local Democrático, como a construção clandestina e a divisão ilegal do solo.

Já o Decreto-Lei n.º 804/76, de 6 de Novembro, previa que as áreas de construção clandestina pudessem ser objeto de medidas tendentes à sua legalização, à sua manutenção temporária ou à demolição, definindo as diretrizes gerais para o seu desenvolvimento. As responsabilidades de estudar e intervir eram atribuídas às autarquias, com o auxílio da Administração Central e a participação das populações interessadas. Tentava-se enquadrar a responsabilidade dos loteadores ilegais nos prejuízos causados e no financiamento das operações necessárias. Respondia-se assim em 1976 ao direito a uma habitação condigna, garantindo o necessário ordenamento do território.

Apesar do esforço das autarquias, que em muitos casos permitiu a reconversão de vastas áreas de território, a sua regularização constituía ainda no início dos anos 90 um desafio enorme, com mecanismos e enquadramento legal que não permitiam maiores desenvolvimentos. Estava identificada a necessidade de enquadrar normas específicas que permitissem facilitar a reconversão destas áreas.

O PCP apresentou dois Projetos de Lei na Assembleia da Republica, em 1995, com a proposta de criação de um programa de reconversão dos loteamentos ilegais e o estabelecimento de normas que visavam facilitar as operações de licenciamento, registos e notariais do processo de legalização de loteamentos ilegais. Nos Projetos de lei reconhecia-se o trabalho desenvolvido pelas autarquias, mas identificavam-se constrangimentos ao desenvolvimento da reconversão urbanística, pelo que se propunha um maior envolvimento dos proprietários nas operações de legalização, através do instituto da compropriedade, assumindo assim as suas responsabilidades enquanto proprietários, com todos os direitos e deveres inerentes. Também se propunha a instituição de uma maioria significativa e legítima para gerir os custos das necessárias obras de urbanização e sua execução, bem como para a execução dos estudos de loteamento, como forma de processo mais adequado, expedito e célere, para além da introdução de outros mecanismos para acelerar o processo de reconversão. O papel das autarquias era não só reconhecido, nas sua esfera de competências, como não era limitada a sua intervenção, para impulsionar o processo em substituição dos proprietários, quando as condições objetivas assim o exigissem.

A caminho dos 20 anos da Lei das AUGI

A Lei 91/95, de 2 de setembro, proposta conjunta e aprovada por unanimidade, estabeleceu um regime excecional para a reconversão urbanística das áreas urbanas de génese ilegal (AUGI), enquadrando na altura neste conceito os prédios que tinham sido objeto de operações físicas de parcelamento destinadas à construção, sem a competente licença de loteamento. No entanto, balizava o regime excecional para os prédios parcelados até à data de entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 400/84, de 31 de dezembro, para os que estivessem classificados como espaço urbano ou urbanizável nos respetivos planos municipais de ordenamento do território (PMOT), ou ainda nos prédios parcelados anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 46673, de 29 de novembro de 1965, quando predominantemente ocupados por construções não licenciadas.

Em 1999, a avaliação da Lei das AUGI traduzia um avanço muito significativo no trabalho de recuperação e legalização, com o envolvimento bastante relevante de comproprietários. No entanto, identificavam-se também dificuldades que justificavam alterações com vista a aligeirar algumas formalidades e a flexibilizar a tramitação dos estudos de reconversão. Nesse sentido, o PCP apresentou o projeto de lei 616/VII, que pretendia alterar a Lei 91/95.  

A Lei 165/99, de 14 de setembro, acabou por introduzir significativas alterações com impacto na delimitação das AUGI, no dever de reconversão, nas cedências e parâmetros urbanísticos, na introdução da comissão de fiscalização, novas competências e regras de funcionamento da assembleia de comproprietários, na instrução e tramitação do pedido de loteamento, nos atos de registo e deveres fiscais, garantia da execução das infraestruturas, entre outras.     

Em 2003, com o projeto de lei 195/IX o PCP pretendeu alterar a Lei 91/95, com as alterações aprovadas na Lei 165/99, a partir da apreciação de que os prazos previstos na legislação em vigor eram insuficientes para a conclusão dos processos de reconversão urbanística. Já então se identificava a necessidade de vencer burocracias administrativas, responder a questões e problemas jurídicos, ultrapassar inércias e também alguns bloqueios, melhorar serviços, motivar as populações para a absoluta necessidade de intervir de forma organizada em todo este processo. Justificava-se assim o alargamento considerado razoável do prazo legal de vigência da Lei das AUGI, de modo a que o problema fosse resolvido a bem da qualidade de vida das pessoas e do ordenamento do território.
No entanto, a par das iniciativas legislativas com vista à prorrogação da Lei das AUGI, na resolução da Conferência Nacional “O PCP e o Poder Local”, em 2003, alertava-se que devia “ser contrariada a emergência de novas áreas e tratadas com critérios idênticos aos de outras urbanizações as densificações e as expansões das já existentes”. Esta apreciação resultava da avaliação de que, para além do necessário esforço de recuperação e integração destas áreas, era necessário ter também em conta que constituíam locais privilegiados para a pequena especulação. Assim, o balanço destes dois aspetos deveria orientar as políticas associadas ao tratamento dos loteamentos ilegais.

A Lei n.º 64/2003, de 2 de setembro, promoveu um conjunto alargado de alterações na Lei das AUGI e promoveu a sua prorrogação. Foram introduzidas alterações referentes às competências da assembleia e da comissão de administração, à divisão por acordo de uso, medidas preventivas atos ou negócios jurídicos e introdução da avaliação anual através de carta temática das AUGI delimitadas, entre outras.

Em 2007, o Grupo Parlamentar do PCP apresentou o Projeto de Lei n.º 386/X, atualizando a apreciação de que foi a Lei das AUGI que criou e desenvolveu uma dinâmica capaz de levar a bom termo o processo de recuperação das áreas urbanas de génese ilegal. Reconhecia-se a diversidade de modelos de intervenção territorial, a extensão territorial e as dificuldades de organização dos comproprietários, mas valorizando o esforço envolvido, assim como os resultados manifestamente positivos. Considerava-se, por isso, justificada uma nova prorrogação da vigência da Lei das AUGI.

A Lei n.º 10/2008, de 20 de fevereiro, acabou por considerar a necessidade de prorrogação da Lei das AUGI, introduzindo ainda pequenas alterações referentes ao processo de reconversão urbanística, compensações de cedências, funcionamento da assembleia e normas fiscais, entre outras.
No Projeto de Lei n.º 418/XII/2ª, apresentado em maio de 2013, volta-se a justificar a manutenção da possibilidade de aplicação desta lei, garantindo que os procedimentos administrativos em curso pudessem tramitar ao abrigo deste diploma, para além de 31 de dezembro de 2013. Pretendia-se assim que os titulares do direito de propriedade e entidades públicas continuassem a desenvolver todos os esforços para ultimar o processo de reconversão.

A revisão ainda necessária

A Lei n.º 79/2013, de 26 de novembro, procedeu à quarta alteração à Lei n.º 91/95, de 2 de setembro. Voltou a prorrogar o prazo para as AUGI disporem de comissão de administração validamente constituída (31 de dezembro de 2014) e de título de reconversão (30 de Junho de 2015). No entanto, estabeleceu logo que deveria ocorrer uma revisão até 31 de dezembro de 2014, percebendo-se que a simples prorrogação e ainda por cima por período tão curto não seria a solução do problema. Assim, a revisão deveria ser orientada pela identificação dos condicionalismos legais existentes relativamente ao processo de reconversão das áreas urbanas de génese ilegal.
Qualquer proposta de revisão da Lei das AUGI deve ter em conta não só o histórico dos processos de reconversão, como o momento atual do contexto social, económico e político. Para além da ainda necessária prorrogação dos prazos, é necessário enquadrar mecanismos que permitam ultrapassar condicionalismos legais associados à morosidade dos processos de elaboração e revisão de planos municipais de ordenamento do território, à compatibilização da ocupação com as condicionantes do território, à dinamização da realização da infraestruturação do território por parte dos proprietários com quadro fiscal próprio, entre outros.

A importância de perceber os reais condicionalismos para a conclusão dos processos de reconversão, no momento atual, é assumida pelo facto de estarmos perante um regime excecional, que deverá permitir enquadrar regras específicas, tendo como horizonte a plena reconversão urbanística e não permitindo a perpetuação de situações contrárias ao ordenamento do território. Assim, a revisão da Lei das AUGI deverá servir para permitir a conclusão dos processos em curso, introduzindo mecanismos facilitadores da reconversão e orientando para seu o fim, com a sua integração nos restantes espaços urbanos, assim como, para o fim da própria Lei das AUGI.
Sendo certo que a revisão da Lei das AUGI não resolverá problemas que decorrem do quadro legal mais geral dos solos e ordenamento do território ou mesmo da necessária mudança na política económica e social do país, ela poderá contribuir para uma nova e derradeira fase da reconversão urbanística.

 

Jorge Gonçalves
Vereador da Câmara Municipal do Seixal