0. Introdução

A propósito da elaboração e discussão do Orçamento de Estado para 2017, as autarquias locais, em particular os municípios, foram confrontados com uma proposta de autorização legislativa para que o governo venha a regulamentar a institucionalização da «tarifa social da água» (artigo 67 do Orçamento de Estado de 2017, Lei 42/2016, de 28 de dezembro).

Não se estando contra a existência de uma tarifa social da água, durante a discussão na especialidade deste tema, o grupo parlamentar do PCP levantou justificadas dúvidas na medida em que sempre defendeu que a aplicação de uma tarifa social da água, que de há muito é prática das autarquias locais é uma competência dos municípios que de maneira alguma lhe pode ser retirada.

Pode-se, desde já, inferir que embora não exista uma violação direta da autonomia do Poder Local em matéria de gestão da água pública, há uma intromissão limitadora dos municípios na definição da extensão e da aplicação das suas políticas sociais, neste particular o da atribuição de apoios sociais, no que respeita ao consumo de água, aos «munícipes carenciados».

Com efeito, a atitude do governo ao aceitar regulamentar a aplicação da tarifa social só pode ser entendida pelo facto de tal proposta lhe dar a oportunidade de passar ao lado da questão essencial sediada no papel e objectivos da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR) enquanto instrumento da estratégia que sucessivos governos têm tido para o setor.

 

1. A tarifa social da ERSAR é mais limitada na dimensão social do que muitos municípios já hoje praticam

Isto mesmo acontece, quando a ERSAR, pronunciando-se sobre os «regulamentos tarifários dos municípios», não aceita os mesmos pelo facto de estes terem opções diferentes do que é o seu entendimento.

Os critérios de atribuição de tarifa social que a ERSAR pretende impor confinam-se ao conjunto de rendimentos que denomina de carência económica, «Complemento solidário de Idoso, Rendimento Social de Inserção, subsídio social de desemprego, 1º escalão do abono de família, Pensão social de invalidez».

A verdade é que o universo dos beneficiários de tarifários sociais decorrentes dos regulamentos municipais (contestado pela ERSAR nos seus pareceres) é muito mais amplo, diversificado e expressivo financeiramente.

Os regimes sociais dos municípios, de entre outros, abrangem nos seus critérios:

- 50% de desconto em todas as tarifas;

- 30 a 50% de acordo com escalão do cartão social;

- Isenção de tarifa fixa pagando, de acordo com o escalão pagam o correspondente ao primeiro escalão até 10 m3 na água e 15 m3 no saneamento;

- Redução em 50% da tarifa variável (que a ERSAR não prevê);

- Isenção de tarifa fixa e aplicação do valor do primeiro escalão até consumo de 10 m3 nuns casos e até 15 m3 noutros.

 

2. A Tarifa Social e os Municípios do Alentejo – casos práticos

Observando a aplicação de tais critérios, muito mais abrangentes dos que são propostos pela ERSAR, deixamos, a titulo de exemplo, a prática de três municípios do Alentejo (um do Centro Alentejo, um do Litoral Alentejano e um do Baixo Alentejo), em que podemos verificar que os tarifários sociais se aplicam a um espectro da população de baixos recursos e que para além da isenção da tarifa fixa (disponibilidade) há igualmente isenção na totalidade ou em parte da tarifa variável (consumo).

 

Município A – (Centro Alentejo) – Regulamento publicado no DR em 2015

O tarifário social aplica-se «Água, Saneamento e RSU». A base de cálculo é a «Pensão Social de Velhice» – valor €202,34 (que acresce até 70 anos o CES – Complemento Extraordinário de Solidariedade de €17,61 e mais de 70 anos o valor passa a €35,20).

Segundo a informação deste município:

 

Numero de escalões – três:

Escalão A — Rendimento per capita igual ou inferior à pensão social

Escalão B — Rendimento per capita igual ou inferior a 1,25 da pensão social

Escalão C — Rendimento per capita inferior a 1,5 da pensão social

 

Benefícios:

Escalão A - Desconto 50% tarifa variável + isenção de tarifas fixa

Escalão B - Desconto 30% tarifa variável + isenção de tarifas fixa

Escalão C - Desconto 20% tarifa variável + isenção de tarifas fixa

 

Nota: Neste município pelos tarifários sociais estão igualmente abrangidas as IPSS e outras entidades sem fins lucrativos cujos descontos ascendem a 50% na tarifa variável e isenção na tarifa fixa.

 

Município B – (Alentejo Litoral) – Regulamento publicado no DR em 2015

O tarifário social aplica-se «Água, Saneamento e RSU» e os valores decorrentes de tal tarifário aplicam-se ao total da fatura

 

Tarifário social dos utilizadores domésticos:

É aplicável aos utilizadores cujo agregado familiar possua um rendimento bruto para efeitos de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) que, no ano anterior, não ultrapasse catorze vezes o valor do indexante dos apoios sociais (IAS), por cada membro do agregado

 

O tarifário social para utilizadores domésticos consiste:

a) na redução em 50 % das tarifas fixas;

b) na redução em 5 % das tarifas variáveis.

 

Nota: Neste município há igualmente: tarifário social dos utilizadores não domésticos: aplicável a instituições particulares de solidariedade social e a organizações não-governamentais sem fins lucrativos;

 

Igualmente existe o tarifário de apoio ao investimento dos utilizadores não domésticos: aplicável a sociedades cujo volume de negócios não tenha ultrapassado € 500 000 no exercício anterior, e as demais pessoas coletivas quando esteja em causa o exercício de atividades que propiciem, comprovadamente, a criação de emprego, o desenvolvimento económico, cultural e social do concelho ou a concretização de ações de manifesto interesse público municipal a ser reconhecido por deliberação da câmara municipal.

No primeiro caso, o tarifário social para utilizadores não domésticos consiste na aplicação do primeiro escalão de consumo aplicável aos consumidores não domésticos no calculo da tarifa variável aplicável e de uma redução de 35 % na tarifa fixa e nas tarifas variáveis.

No segundo caso, o tarifário de apoio ao investimento para utilizadores não domésticos consiste na aplicação de uma redução de 40 % na tarifa fixa e nas tarifas variáveis.

 

Município C – (Baixo Alentejo) – Regulamento de Apoios Sociais

 

Tarifa Social da Água usufruem:

Os munícipes com rendimentos inferiores ou iguais a 50% ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) fixado pela Segurança Social (Escalão A) ou com rendimentos inferiores ou iguais a 70% ao valor do indexante dos apoios sociais fixado pela Segurança Social (Escalão B);

 

Consideram-se, para efeitos do apoio da Tarifa Social da Água, as seguintes reduções no valor do consumo de água:

a) 50% para os beneficiários do Escalão A;

b) 30% para os beneficiários do Escalão B.

 

Nota: Há ainda a «Tarifa Familiar da Água», que é um tarifário especial que se destina a beneficiar as famílias numerosas e que considera a dimensão das famílias mediante o alargamento dos escalões de consumo definidos para a tarifa doméstica normal.

 

Como se pode constatar, nestes três exemplos, pese embora se verifiquem critérios diferenciados na aplicação da «tarifa social da água», só possível no quadro da autonomia do Poder Local, o número atual de beneficiários ascende a cerca de 300 famílias.

Por isso, amarrar a tarifa social da água ao cumprimento das recomendações da ERSAR, contrariamente ao efeito pretendido que é a redução da tarifa da água, conduz ao seu aumento.

 

3. A regulamentação da tarifa social visa dar cobertura à estratégia da ERSAR ditada por critérios economicistas, contrário ao direito de acesso à água enquanto bem público

As recomendações da ERSAR no que se referem à faturação pela prestação dos serviços de águas e resíduos, estão concebidas numa perspetiva da recuperação económica («a chamada recuperação de custos»), isto é, estas recomendações colocam que todos os custos associados à prestação destes serviços públicos devem ser traduzidos na fatura. Por exemplo, se um município entender fazer um determinado investimento ao nível da infraestrutura do abastecimento de água, as recomendações da ERSAR, com carácter de imperatividade, dizem que o município não o pode assumir pelo seu orçamento e que deve traduzir esse o investimento na respetiva fatura. Desta forma os cidadãos não pagam menos, mas sim mais pela água.

Acresce a isto, o facto de o anterior governo do PSD e CDS ter atribuído competências à ERSAR que extravasam em muito o seu âmbito de intervenção dita «reguladora», nomeadamente a possibilidade de a ERSAR fixar as tarifas da água de cada município se este não cumprir as recomendações da ERSAR, tornando recomendações em obrigações.

 

4. A proposta reforça a linha de ataque da ERSAR (e dos governos) à autonomia municipal em vez de a combater e eliminar

A atual missão da ERSAR é a de assegurar por via da intromissão na autonomia municipal na definição das tarifas e em outras matérias, que o sector evolui para um quadro favorável à estratégia de privatização da água.

Legislar em matéria de tarifas sociais assente nas disposições da ERSAR ignora o essencial dos impactos decorrentes da ausência de um regime tarifário compatível com o direito de acesso à água, na sua dimensão social, que de entre outras medidas exige que:

- As empresas do grupo Águas de Portugal ponham fim à imposição de fees de gestão e de remuneração de capitais próprios que têm vindo a contribuir para onerar as tarifas em alta, com reflexos nas tarifas a cobrar aos consumidores e consequentemente nas tarifas sociais;

- Se elimine a imposição de se atingir num prazo curto (até final de 2017), no caso de candidaturas a fundos comunitários, um nível de recuperação de gastos maior ou igual a 90% que a ser aplicado implicaria um aumento substancial das tarifas;

- Se promova a alteração aos estatutos da ERSAR, remetendo a ERSAR na relação com os municípios enquanto entidades gestoras, a um «papel» de carácter instrumental de apoio (e não com carácter imperativo e/ou vinculativo em matéria tarifária), fazendo com que o regulamento tarifário dos resíduos em vigor e o eventual regulamento tarifário das águas não se aplique a estas, dado que afunila as opções municipais e restringe a aplicação das tarifas sociais a pressupostos que não são conformes com a autonomia municipal, já que a diversidade de situações existentes e a acessibilidade económica dos consumidores a este serviço essencial, transformando dessa forma as tarifas sociais em instrumentos de pequeno significado.

 

5. A proposta contrariamente ao efeito que se diz pretender conduz ao aumento da tarifa da água

Como já antes se referiu, não nos opomos à existência de uma tarifa social da água, em que cada município tem autonomia para a determinar. A questão é que associar a tarifa social da água ao cumprimento das recomendações da ERSAR, como alguns defendem (e ao que parece o governo quer acolher), é totalmente descabido.

Com efeito, a proposta não só não respeita a diversidade da realidade social e económica do país. Como a atual situação, em que o interior do país se encontra desertificado e envelhecido determina que a aplicação da «tarifa social da água» tenha em consideração essas mesmas realidades.

Pelo que, a seleção dos «beneficiários» não pode estar exclusivamente associada aos mecanismos determinados pelo o «universo de apoios sociais» inscritos na proposta de Orçamento de Estado para 2017 (artigo 67).

Concomitantemente, só o respeito pela autonomia do Poder Local Democrático, onde os municípios são entidades gestoras dos sistemas de águas, garantirá por estes a regulamentação das normas da aplicação da tarifa social da água.

A não ser assim, está-se perante uma proposta cujo reflexo será, como já antes foi referido anteriormente, o do aumento do valor das tarifas de água e o nivelamento por baixo da aplicação da tarifa social.

 

6. O governo vai regulamentar a «tarifa social» - Interrogações que merecem esclarecimentos e respostas

A situação decorrente de tal decisão levanta legítimas interrogações:

- Sendo os princípios definidos no artigo 67 do Orçamento de Estado para 2017 muito idênticos aos defendidos pela ERSAR, importava saber o que vai e como vai o governo regulamentar.

- Se o município não aderir à «tarifa social de água», que o governo irá regulamentar, está impedido de aplicar tarifa social de água?

- Em que medida, na instrução do processo da «tarifa social», a adesão e o respetivo financiamento, fica a porta aberta, para que, em alguns sistemas de águas, terem que ser os municípios a ressarcir as empresas gestoras?

- Ou pelo contrário, as empresas gestoras dos sistemas verticalizados, fazem repercutir nos custos, os valores dos apoios desta medida social, e concomitantemente fazem repercutir, tais custos, no valor das tarifas em geral?

Não se descortinando qual vai ser a amplitude da regulamentação que irá institucionalizar a tarifa social, importa afirmar que será inaceitável que o governo venha a impor, aquilo que já hoje a ERSAR procura aplicar, quase sempre em confronto com a autonomia política, administrativa e financeira das autarquias locais, colidindo com as competências dos municípios na gestão pública da água.

 

 

José Figueira

(sociólogo)