Apesar da incansável propaganda e das enormes pressões por parte de instituições financeiras internacionais e governos neoliberais a favor das privatizações e das parcerias público-privadas (PPP), várias cidades, regiões e países remunicipalizaram os serviços de água e saneamento. Conforme revela o livro Our public Water future – the global experience with remunicipalisation, nos últimos 15 anos, 235 cidades em 37 países remunicipalizaram os serviços públicos de água e saneamento, abrangendo 100 milhões de pessoais.
O confronto com as catastróficas consequências da privatização – falta de investimento, aumento de preços, destruição de direitos laborais e sociais, danos ambientais – tornou claro que o setor público é a melhor forma de garantir um serviço de qualidade e de promover o direito humano à água e ao saneamento. Ao longo deste período, foram várias as grandes cidades que remunicipalizaram os serviços: Atlanta e Indianápolis (EUA) Accra (Ghana), Almaty (Cazaquistão), Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina), Budapeste (Hungria), Dar es Salaam (Tanzânia), Jacarta (Indonésia), Kuala Lumpur (Malásia), Joanesburgo (África do Sul), La Paz (Bolívia), Maputo (Moçambique) e Paris (França).
Inversamente, foram muito poucos os casos de privatizações nas grandes cidades, de que são exemplo a cidade de Nagpur (Índia), que teve grande oposição e contestação e de Jeddah (Arábia Saudita).
Nos chamados países ricos, o ritmo das remunicipalizações duplicou nos últimos cinco anos, passando de 41 processos, entre 2005 e 2009, para 81, entre 2010 e 2014. A tendência foi particularmente visível em França, pátria das privatizações/concessões, com mais remunicipalizações (94), seguindo-se os EUA (58), Espanha(14), Alemanha (9), Argentina (8), Hungria (4) e África do Sul (3).
O que significa a remunicipalização
A remunicipalização é a passagem dos serviços privatizados, nas suas mais diversas formas: propriedade privada, outsourcing, concessões para a propriedade, gestão e controlo públicos.
Este é um processo que não se confina ao nível local. Os poderes públicos regionais e nacionais têm uma considerável influência sobre as políticas e o financiamento dos serviços e, em algumas situações, atuam diretamente como operadores, envolvendo portanto um contexto mais amplo.
Mas a remunicipalização é muito mais do que uma mera transferência de propriedade ou de gestão do serviço. Representando uma nova possibilidade de (re)construir serviços de água democráticos e de qualidade em benefício das atuais e futuras gerações, a remunicipalização, seja qual for a forma ou escala, é sobretudo uma reação coletiva contra a privatização e contra as políticas que a promovem e sustentam, e neste sentido, parte integrante da luta mais vasta pela transformação social.
Privado é pior
As razões que levam à remunicipalização são semelhantes em todo o mundo: desempenho medíocre das empresas privadas, subinvestimento, disputas sobre custos operacionais, aumento brutal de preços, dificuldade em fiscalizar os operadores privados, falta de transparência, despedimentos e deficiente qualidade de serviço.
Estes são problemas que também marcam as privatizações/concessões efetuadas em Portugal, como a auditoria do Tribunal de Contas a 19 das 27 concessões privadas de sistemas de água “em baixa” veio confirmar, dando razão aos que combatem a privatização e defendem a urgência da remunicipalização terminando com contratos abusivos e ilegais que lesam gravemente as nossas populações, os trabalhadores e os municípios.
A maioria das remunicipalizações ocorreu por rescisão dos contratos com as empresas privadas antes do prazo expirar. Nestes casos, os municípios tiveram de enfrentar duros contenciosos com os privados e pagar avultadas indemnizações.
A cidade de Indianápolis foi obrigada a pagar 29 milhões de dólares à multinacional francesa Veolia, enquanto os habitantes de Berlim tiveram de suportar elevados custos, cerca de 1,3 mil milhões de euros, com a recompra das ações detidas pelos dois operadores privados, a RWE e a Veolia.
Sendo óbvio que a melhor forma de evitar os custos da remunicipalização é não privatizar, isto significa que os contratos privados revelaram-se tão insustentáveis que os municípios optaram pela rescisão, mesmo sabendo que poderiam ter de indemnizar as empresas.
Em março passado, o Tribunal Distrital Central de Jacarta (Indonésia) anulou os contratos de privatização da água geridos pela multinacional francesa Suez (PT PAM Lyonnaise Jaya - Palyja) e Aetra, considerando que os privados foram negligentes no cumprimento do direito humano à água para os habitantes de Jacarta. A Suez recorreu da decisão.
Já a Argentina acaba de ser condenada por um tribunal arbitral, o Centro Internacional de Resolução de Conflitos relativos a Investimentos (ICSID), a indemnizar a Suez em 375 milhões de euros pelo cancelamento, nos anos 90 do século passado, do contrato de concessão de água da cidade de Buenos Aires.
Note-se que o esquema que permitiu à Suez processar um Estado soberano, é o mesmo que a União Europeia e os Estados Unidos da América pretendem incluir no TTIP - Transatlantic Trade and Investment Partnership (em português conhecido pela sigla APT - Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento), o acordo de livre comércio que ambos estão a negociar e que constitui um novo assalto aos serviços públicos.
Os benefícios da remunicipalização
Eliminando a lógica de maximização do lucro, imperativa na gestão privada, a gestão pública melhora o acesso e a qualidade dos serviços de água, como se constata em casos tão diversos como o de Paris, Arenys de Munt (Espanha) e Almaty (Cazaquistão). A gestão pública também permite aumentar significativamente o investimento, como é o caso de Grenoble (França), Buenos Aires e Arenys de Munt, onde o sistema tarifário foi revisto de forma a garantir o acesso à água por parte das famílias com rendimentos mais baixos. Em Paris e Grenoble, os novos operadores públicos introduziram formas avançadas de participação dos cidadãos na gestão.
A realidade comprova que a gestão pública produz resultados muito melhores do que a privatização. Porque reinveste os lucros nas infraestruturas, respeita os direitos laborais, a preservação ambiental e é mais transparente. Sem o objetivo da concorrência por mercados, os operadores públicos de água partilham experiências fortalecendo e ampliando as capacidades e os recursos existentes.
Contudo, sob influência das forças neoliberais os operadores públicos atuam cada vez mais como se fossem empresas privadas – é o caso entre nós da Águas de Portugal - privilegiando a obtenção de resultados, provocando nos cidadãos confusões de apreciação e de imputação de responsabilidades. Isto significa que o objetivo de garantir o acesso de todos à água só pode ser atingido se as pessoas tiverem de facto poder sobre o sistema e a sua gestão, garantindo que esta é exercida na defesa e promoção dos seus direitos e interesses.
Cooperação público-público
A cooperação dos operadores públicos de água e de associações nacionais ou regionais nos processos de remunicipalização é essencial. Em Espanha, a empresa pública regional Aguas del Huesna (Andaluzia) facilitou a remunicipalização em 22 municípios. Os operadores de água remunicipalizada de Paris e Grenoble tiveram um papel crucial na remunicipalização e melhoria dos serviços de água noutros municípios, em França e não só. A entidade regional CONGIAC, na Catalunha, teve um papel chave no processo de remunicipalização em Arenys de Munt, desde a tomada de decisão até à sua completa implementação.
Após o falhanço da parceria com a Águas de Portugal, o governo de Moçambique encetou uma parceria sem fins lucrativos com uma empresa pública holandesa de água. A cooperação entre empresas públicas de água não só é uma alternativa viável às privatizações como é a forma mais eficaz de ajudar a melhorar os serviços públicos de água e saneamento.
Melhores condições de trabalho
No plano laboral, a remunicipalização significa melhores possibilidades de intervenção das estruturas sindicais, a criação de mais postos de trabalho e uma melhoria das condições laborais. Mas tal como a privatização, este é um processo que também gera incertezas, pelo que a preparação, a participação dos trabalhadores e a transparência na sua implementação são indispensáveis. Sobretudo num contexto em que as políticas de austeridade, atingindo com particular violência o setor público, com o objetivo de impedir que as condições oferecidas possam servir como referência para o conjunto das relações laborais, agravaram consideravelmente o seu funcionamento. Apesar de tudo, o que a realidade mostra é que a valorização e o respeito pelos trabalhadores, pela contratação coletiva e pelos valores de serviço público só é possível realizar no quadro de uma gestão sob controlo democrático.
Em conclusão, a remunicipalização veio para ficar e apesar de todos os obstáculos, os resultados e as conquistas alcançadas demonstram que o controlo e a gestão públicas são essenciais para construir serviços de água democráticos, sustentáveis e de qualidade para todos. Também em Portugal esta será uma exigência que se intensificará nos tempos mais próximos e a luta das populações e dos trabalhadores será determinante para recuperar o que é de todos.
Jorge Fael