Encerrar o ciclo da água? A quem interessa?
Introdução
Um dos principais argumentos utilizados em 2011 pelo então presidente da Cãmara Municipal de Lisboa (CML) foi a enorme vantagem do encerramento do ciclo da água dentro de uma mesma empresa. Assim, desde a captação no meio à deposição no mesmo, todo o circuito se encontraria dentro do mesmo sistema.
É necessário fazer neste momento um pequeno parêntesis. Só a confusão de conceitos ou a manipulação dos mesmos pode levar a que se designem as acções de captação, tratamento, utilização nas diversas áreas, recolha das águas residuais, tratamento e deposição no meio, como ciclo da água. De facto este é um desvio dedicado à utilização intensiva e não parte do ciclo. Aliás só mesmo a industrialização, crescimento populacional e industrialização dos processos agrícolas conduziriam a esta situação, uma vez que quer os tratamentos a montante e jusante do consumo são acelerações aos processos de depuração natural a que o aumento de velocidade do ciclo da água, em 36 vezes desde a altura da Revolução Francesa, não dá resposta.
A colocação sob o mesmo controlo da produção é de facto o controlo do consumo, quem detém o recurso, os modos, a tecnologia, detém a possibilidade de determinar quais os consumidores favorecidos, os preços de consumo e os critérios que os determinam.
Do ponto de vista da propriedade pública uma situação deste tipo pode não causar grandes problemas, porém cria um problema irresolúvel num quadro de colocação destas situações em mãos privadas. É de notar que as investidas visando a privatização da Empresa Portuguesa das Águas Livres (EPAL) eram já bem conhecidas aquando do início das conversações para este negócio e que à medida que se foram aprofundando também se aprofundou o interesse do governo em privatizar esta empresa.
Mistérios de Lisboa
Lisboa possui mais de 1400 quilómetros de rede de drenagem, incluindo nesta sistemas modernos, como no Parque das Nações, cuja manutenção e know how, não só não ficaram disponíveis depois da passagem das estruturas para a responsabilidade do município, mas que são também dispendiosos e frágeis. Não obstante, a maior parte do sistema é antigo, obsolescente e com manutenção deficiente.
Ao contrário das aparências a cidade de Lisboa é extremamente irrigada, sendo que ao longo da sua costa existem sistemas de ribeiras que vão do Trancão a Algés, mas cujas mais relevantes são a Ribeira de Alcântara, a de Vale Verde e a Ribeira de Arroios, todas estas canalizadas em diferentes épocas históricas, mas que não sofreram significativas obras de melhoramentos desde então. Por outro lado, as redes de drenagem de águas residuais e pluviais, que foram evoluindo também dentro dos conhecimentos e métodos construtivos de cada época.
Seria de esperar que perante esta realidade a cidade de Lisboa possuísse um dos mais desenvolvidos e avançados sistemas de planeamento, desenho, execução e manutenção de redes de drenagem. Em lugar disso verifica-se que o saneamento no município veio perdendo autonomia, competências e recursos humanos. De Departamento passou a Divisão, trabalhando em condições físicas deploráveis, e tendo de actualizar a cartografia com apenas três técnicos.
Evidência destas limitações é o Estudo do Plano de Drenagem realizado pelo consórcio Chiron, Engidro e Hidra, que reconhece a falta de informação ao nível de terreno – é bom lembrar que as brigadas de colectores estão reduzidas a 12 elementos – e portanto parte de uma modulação teórica para o efeito.
Estas realidades deixam à vista um desinvestimento na área da drenagem e do saneamento em baixa nos últimos anos na Câmara Municipal de Lisboa que, contudo, é apenas o acentuar da falta de uma actuação de fundo que remete a tempos bem mais longínquos. Do acentuar deste desinvestimento não é alheio o desejo nunca escondido por parte do actual executivo de alienar a drenagem à EPAL.
Ligações Perigosas
A venda dos sistemas de drenagem em baixa à EPAL, por um valor a rondar os 100 milhões de euros era à partida um negócio que pareceria vantajoso para a CML. Não só teria um encaixe imediato que permitia amortizar a dívida, como se livrava das obras de manutenção e modernização dos sistemas de drenagem que, como era consabido consumiam recursos que se permitiam desviar para outros fins, como aliás é perfeitamente visível nas opções da câmara municipal em que a chamada governança e a gestão de proximidade – e é bom de notar que ainda ninguém foi capaz de definir de um modo cabal o que isto significa – tem o grosso do investimento, ao passo que o investimento nos sistemas vai minguando. Prova disso é passado mais de meio ano sobre as últimas cheias em Lisboa, aquilo que podemos notar é apenas o investimento na actualização do Estudo do Plano de Drenagem.
Para além disso ao avançar com as tentativas de privatização do grupo Águas de Portugal (AdP), a posse da rede significava em temos de negócio um activo altamente valorizável, mesmo sem que tivessem sido realizadas, ou se viessem a realizar, quaisquer das obras necessárias. Ao assegurar a posse dos sistemas ligados ao uso e tratamento, a EPAL, e por seu intermédio o grupo AdP, assegurava que excepto o meio natural, que por enquanto está fora do alcance, nenhuma água poderia ser utilizada ou tratada sem o seu consentimento e cobrança de taxas que rentabilizariam o negócio. Esta perspectiva é tão mais rapace sobre o meio, porquanto mesmo sem garantir a posse directa deste, garantia que qualquer que fosse a proveniência da água, exterior ao circuito, o seu tratamento seria efectivamente cobrado pelo detentor dos sistemas.
Mais, a perspectiva de fazer recair sobre o utilizador os custos do uso do recurso, isentando quem disponibiliza, fariam gerar a subida em flecha dos tarifários de água e saneamento que, pese embora o falhanço do negócio, foram já alvo de uma escalada e que se tornariam proibitivos não garantindo acesso ao recurso, ou tolerando-o em precárias condições para a população em geral e os mais desfavorecidos em particular.
A mudança de paradigma, de poluidor-pagador, para o utilizador-pagador, parecendo alheia a esta questão não o é de facto, pois permite rebater sobre o último as responsabilidades da empresa fornecedora. Esta capta, trata e fornece a água aos cidadãos, ou recolhe, trata e reintroduz no meio. Em qualquer destes processos existe um gasto de matéria e energia que não pode ser recuperado, este é um custo de exploração, que sendo social tem de ser assacado a sociedade (numa perspectiva de serviço público) ou recair sobre os lucros (se a exploração é privada). Eis o poluidor, que é quem disponibiliza. O utilizador, ou utente, está a fazer uso de um bem sem o qual a sua vida não é possível, não tem qualquer responsabilidade na qualidade com que é fornecido, nem tampouco na qualidade do efluente, com excepção de um comedimento que tem de vir de uma consciencialização. Não é neste ponto que se recuperam custos, esta falácia é apenas ocultar as externalidades sociais causadas. As outras são as ambientais provocadas pelo aligeirar dos cuidados de tratamento função das imposições financeiras.
Negócio falhado? Ou adiado?
Em aparência um negócio tão promissor quanto este para as AdP teria todas as condições para ir avante, tanto mais que a maioria socialista na CML se escudava no facto da EPAL pertencer à esfera de gestão pública para defender que não existia qualquer princípio ou intenção de privatização da rede de saneamento, ainda para mais, porque a SIMtejo detinha o saneamento em alta, donde nem sequer se estava a encerrar o dito ciclo da água, mas tudo acabou por ser clarificado com a privatização da Empresa Geral do Fomento, S.A. (EGF), a restruturação dos sistemas de saneamento e águas. Por outro lado, a EPAL não iria assumir nem prioridades, nem obras de manutenção da rede de drenagem e colectores, pelo menos não na escala que seriam necessários, o que era desde logo a redução de despesas previstas.
A possibilidade de por esta via a EPAL se apossar das taxas de saneamento seria, como é óbvio um interesse para a empresa, numa perspectiva da sua posterior alienação, mas seria mais do isso. A autarquia deixaria de receber anualmente, os 50 milhões de euros de taxas de saneamento durante, pelo menos, 50 anos e a EPAL passaria a pagar os cerca de 25 milhões de euros à SIMTEJO pelo tratamento de esgotos, saneamento em alta, o que contudo teria um impacte relativo a médio e longo prazo.
Os alegados benefícios para a CML, não se aguentam numa análise prospectiva pois, entre custos de manutenção e modernização (€160 milhões em 10 anos), e os ganhos em taxas durante 50 anos, bastariam três anos para se chegar à verba que a gestão do município considera necessária para a revitalização da rede de saneamento da cidade de Lisboa.
Ao fim de 50 anos, prazo de vigência prevista do contrato de cedência à EPAL, a autarquia teria perdido qualquer coisa como 2500 milhões de euros. O interesse da CML, ou da maioria que a gere, para ser mais preciso, não advém portanto de uma análise a longo prazo, ou de uma vantagem para a eficiência do serviço e do utente, advém da importância que esse encaixe representa para acções imediatas e de elevado impacte perceptível. A EPAL, ou quem obtivesse a sua gestão teria encaixado por seu lado essa verba.
Daqui se infere que o interesse das duas partes neste negócio nada tem que o relacione à cooperação e melhoria dos serviços ou da melhor resposta à modernização e manutenção da rede, ou sequer de evitar à câmara um encargo que esta não poderia suportar. Tem como vantagens o encaixe imediato de 100 milhões, com impacte na redução da dívida e acções visíveis para o munícipe e o cidadão – a câmara faz muita obra – satisfazendo as necessidades eleitoralistas do PS e de voragem privatizadora deste e do PSD. Tudo isto a custas do utente e dos que são atingidos pelas cheias recorrentes. É de esperar que com esta ou outra maioria que das eleições venha a sair, o negócio por ora parado seja para prosseguir.
Fontes consultadas:
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http://www.tvi24.iol.pt/portugal/entrevista/epal-pode-nao-ficar-com-saneamento-este-ano
EPAL pode não ficar com o saneamento este ano -
www.stml.pt/comunicados/10-comunicados-2010/142-venda-dep-saneamento20101021.html
Comunicado do Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa 21/Outubro/2010 -
Comentário à notícia A restruturação da Câmara de Lisboa, jornal i, 12/Outubro/2010
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http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1729887&page=-1
EPAL trabalha em acordo com a câmara para o saneamento, 8/Dezembro/2010 -
Informação escrita do presidente da Câmara Municipal de Lisboa
1/Junho/2012 - 31/Agosto/2012
Carlos A.F.de Moura