Há, seguramente, novos desafios para quem vivencia ou simplesmente encara as freguesias, mas talvez seja melhor não perder ainda de vista os velhos desafios, os desafios de sempre recolocados na ordem do dia, com especial vigor, pela última década, de particular intensificação de políticas centralistas de cariz antidemocrático.
A pretexto da crise económica e financeira, os governos e as maiorias parlamentares que os suportaram e suportam desencadearam uma feroz ofensiva contra os direitos dos trabalhadores e do povo e contra o regime democrático e algumas das suas instituições.
Porque o regime contém em si mesmo muitos daqueles direitos e é deles que se trata quando nos bombardeiam com a estafada prédica do «viver acima das nossas possibilidades». Não, não é do carro do vizinho ou da casa com mais um quarto, da lua-de-mel dos miúdos (que lá casaram, não têm emprego e vão para algures nas Caraíbas, quando bem podiam ficar-se pela Ericeira, em A-Ver-o-Mar ou mesmo em casa dos avós no Portugal profundo). Isto é para iludir, para gerar empatia, porque do que realmente se trata é do direito ao trabalho, à saúde, à educação, à habitação.
E mais ainda: certas instituições corporizam aspetos importantes do próprio regime e obstaculizam, por pouco que seja, a sua transformação, entre elas as autarquias locais – geram bem-estar comunitário, segundo eles, acima das nossas possibilidades e sempre se constituem em focos de resistência (por vezes tíbia, é certo, mas, mesmo assim, incómoda) quando se abocanham os direitos e mordem os interesses das populações que representam.
Este foi o quadro geral em que as autarquias viram a sua autonomia reduzida a mínimos intoleráveis, a carga burocrática cresceu a níveis asfixiantes, sofrem intervenções tutelares vedadas pela constituição, são sancionadas sem processo, como de organismos sob direção do governo se tratasse, e viram as suas responsabilidades aumentadas e os recursos para lhes fazer face diminuídos.
Para os municípios a associação forçada e a compressão de poderes e competências e, no que toca às freguesias, um processo burocrático de liquidação de mais de um milhar que, sabia-se e está comprovado, não poupou um tostão, afastou os cidadãos dos seus representantes, não extinguiu todas as freguesias minúsculas, criou monstros dificilmente governáveis e reduziu em cerca de 10 mil os cidadãos empenhados na gestão da coisa pública.
É por isso que o primeiro dos novos desafios continua sendo o mais velho de todos: a defesa intransigente da autonomia das Poder Local. Defesa esta que passa pelo fim das intervenções tutelares abusivas e pelo reforço dos meios necessários ao exercício das atribuições que lhes caibam.
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Há quem veja nas autarquias pouco mais que serviços desconcentrados do estado e o desafio que se perfila, não sendo inteiramente novo, é o de colocar, com intensidade renovada e em alternativa àquela visão, a necessidade de aprofundar o quadro constitucional na consideração das autarquias locais como elementos essenciais da organização do Estado democrático. É através delas que têm expressão organizada muitas das aspirações e dos interesses das comunidades locais e são elas que lhes podem dar resposta de forma mais pronta, eficaz e, as mais das vezes, mais eficiente.
Uma linha de ação naquele sentido é, sem dúvida, a de, sempre que seja esse o sentimento e o interesse das populações, restaurar freguesias liquidadas pela reforma. A este propósito cabe relembrar que, no âmbito da reforma, as poucas transformações justas apenas serviram para legitimar os inúmeros atropelos cometidos.
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A problemática das atribuições das freguesias e das competências dos seus órgãos é porventura aquela em mais e mais novos desafios se colocam. Tantos e tão diversos quantas as vivências concretas, as preocupações, as perspetivas e mesmo os propósitos de autarcas, investigadores e outros cidadãos que se têm perfilado a opinar sobre o assunto.
Cumulativamente, há uma enorme pressão política e institucional para que as autarquias admitam a transferência, para os seus órgãos, competências de mera execução, sempre sem os recursos necessários ao seu exercício ou mesmo sem quaisquer recursos adicionais.
Ora, assunção de obrigações e mesmo de competências de execução sem a capacidade de optar e definir as políticas que essas competências e obrigações visam concretizar não dignifica o Poder Local, em particular as freguesias, antes contribui para banalizar a tendência para dissolver as autarquias na administração central do estado e gerar laços de dependência, quando não de subserviência, em relação a esta última e ao Poder Central.
Nesse sentido, a assunção pelas freguesias do atendimento aos cidadãos que deveria ser proporcionado por pessoal dos serviços competentes não só as não dignifica, transformando-as em meras executoras dependentes das instruções de funcionários superiores da Administração Central, como contribui para a diminuição do emprego e a degradação dos serviços públicos em geral.
Outra área de novidades frequentes é a dos direitos sociais, em especial os estabelecidos na Constituição da República. A assunção pelas autarquias de atribuições e competências nestes domínios, por aquela razão, mas também e sobretudo em nome da sua universalidade e da justiça e equidade no acesso aos serviços que os concretizam – o direito de cada cidadão a aceder a tais serviços não pode ficar dependente das condições próprias de cada autarquia para lhos facultar.
Simultaneamente desenham-se tendências para envolver as autarquias, sobretudo as freguesias, na execução de políticas sociais e na adoção de práticas assistencialistas. Tendências estas que devem ser firmemente rejeitadas (sem prejuízo de intervenções pontuais em casos de extrema urgência e necessidade), tanto pelas já referidas injustiças relativas que a diversidade das autarquias provocará, como pela dimensão dos recursos, técnicos e financeiros, que envolvem e mais ainda pelo que toca aos perigos para a transparência dos processos democráticos que tais práticas propiciam.
Ainda relativamente às atribuições e competências, há aqueles que veem nas freguesias subdivisões dos municípios e, contrariamente, os que as entendem em concorrência com eles e consideram que se reforçam ganhando dimensão e densidade que lhes permitam ser quase municípios. Falsa alternativa esta: sem prejuízo de um amplo escopo de atribuições próprias cujo exercício dependerá, em concreto, das condições específicas de cada freguesia, cada um dos níveis do Poder Local tem natureza e objeto próprios e é na clarificação, no aprofundamento e eventual alargamento da sua esfera exclusiva de intervenção, indissociável da proximidade e do exercício de funções pouco diferenciadas, mas imprescindíveis à vida em comunidade, que se devem encontrar as vias para dignificar as freguesias e reforçar o seu papel.
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Por fim, a freguesia é o espaço institucional em que melhor se conjugam o exercício da democracia representativa e a vivência da democracia participativa e é imprescindível promover o que for possível e necessário para que a organização e as atribuições das freguesias, as competências dos seus órgãos e os meios colocados à sua disposição, sem descurar considerações relativas à eficácia e eficiência da administração pública em geral, sejam sobredeterminados pelo objetivo essencial de consolidar, promover e aprofundar a democracia nas suas múltiplas vertentes.
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Recentrar a questão na ótica da defesa, consolidação e aprofundamento do regime democrático, atendendo subsidiariamente às questões colocadas pelo “bom governo”, é, pois, uma necessidade urgente. Mas é também a única via consentânea com a natureza própria do Poder Local e dos seus órgãos.
João Almeida