Ao longo de várias décadas, os antigos Hospitais Civis de Lisboa, designados e configurados como um grupo hospitalar, foram objecto de diversas alterações organizativas e regulamentares, tendo passado a integrar o Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E., nos termos do Decreto-Lei n.º 50-A/2007, de 28 de Fevereiro e do Decreto-Lei n.º 44/2012, de 23 de Fevereiro.

 

As unidades hospitalares da Colina de Santana têm constituído mais uma das facetas do extenso património do Estado, na cidade de Lisboa, objecto de especulação, através da empresa Estamo, criada em 1993, quando Cavaco Silva chefiava o Governo. Com que objectivos? Primeiro para extinguir equipamentos do Estado e lançar os respectivos terrenos e construções nos meandros da especulação imobiliária, depois, e principalmente, para promover ficcionalmente a redução do défice.

 

Com efeito, pelo Decreto-Lei n.º 185/2002, já o governo de Durão Barroso / Manuela Ferreira Leite definira os princípios e os instrumentos para o estabelecimento de parcerias em saúde, em regime de gestão e financiamento privados, estipulando, no seu artigo 7.º, que os activos patrimoniais hospitalares poderiam envolver «a alienação de património do Estado ou de outras entidades públicas». Eis aqui as famosas parcerias público privadas na área da Saúde.

 

Ora, durante anos, sucessivas Leis do Orçamento de Estado foram definindo critérios e consignando especificações para a alienação e oneração de imóveis envolvendo como intermediária, pelo menos até 2008, a empresa Sagestamo - Sociedade Gestora de Participações Sociais Imobiliárias, S. A., criada pelo Decreto-Lei n.º 209/2000, de 2 de Setembro.

 

Desde então, todos os Orçamento de Estado estipulavam a «alienação de bens imóveis do Estado e dos organismos públicos às empresas (…) subsidiárias da Sagestamo», processando-se por ajuste directo. Enquanto à Sagestamo, do grupo Parpública, lhe competia gerir a carteira de imóveis, a sua subsidiária Estamo era quem tinha competência para a sua venda. Por sua vez a Estamo ganhou maior fôlego, em 2007, pela fusão com a empresa Locagest, durante a vigência do primeiro governo de José Sócrates.

 

Foi também em 2007, com o Decreto-Lei n.º 280/2007, que se estabeleceram «as disposições gerais e comuns sobre a gestão dos bens imóveis dos domínios públicos do Estado». Foi com base neste diploma e na subdelegação de competências dos ministros das Finanças e da Saúde nos seus secretários de estado, pelo Despacho n.º 22.453/2009, que foi confirmada a autorização da celebração de contratos de gestão imobiliária e respectiva afectação dos valores da alienação dos prédios dos quatro hospitais da Colina de Santana.

 

Esta decisão surge consubstanciada na «Lista de alienação de imóveis do Estado em 2009», onde se identifica cada processo patrimonial com a designação de vários imóveis a alienar, incluindo, nomeadamente, os prédios urbanos dos Hospitais dos Capuchos, São José, Miguel Bombarda e de Santa Marta.

 

À custa do anunciado encerramento de serviços públicos essenciais, o Estado encaixava um total de 111.440.250,00 €. Como? Com a Estamo, empresa do Ministério das Finanças, a adquirir aqueles hospitais ao Ministério da Saúde e encomendando discretamente, sem concurso público, os projectos para os terrenos libertados pela destruição dos referidos hospitais.

 

O objectivo imediato residiu em a Estamo pagar ao Estado o valor dos edifícios a alienar e o Estado arrecadar receita para ficcionar a redução do défice. Pura engenharia financeira em que o Estado vendeu ao próprio Estado, dissimulando, assim, as contas públicas. Os hospitais, incluindo os da Colina de Santana, constituíram, como se comprova, um óptimo balão de ensaio para esta camuflagem financeira.

 

E para que não restassem dúvidas, a proposta contida no «Relatório final do Grupo Técnico para a Reforma Hospitalar», datado de Novembro de 2011, esclarecia que se tinha em vista «uma redução no financiamento das unidades hospitalares (só para 2012) de cerca de 358 milhões de euros, em linha com a redução do orçamento da saúde para os Hospitais» e «uma redução potencial da estrutura de custos das unidades hospitalares estimada em cerca de (mais) 476 milhões de euros», num total de 834 milhões. Estes «objectivos (tinham) como corolário atingir uma redução (…) dos custos operacionais dos hospitais» em pelo menos 15%. Mera operação de especulação financeira à custa da nossa saúde!

 

Os contratos-promessa de compra e venda previam a ocupação dos edifícios, sem o pagamento de qualquer compensação, mas só até 31 de Dezembro de 2010. Pelo que, a partir daquela data, se os edifícios continuassem ocupados sem ter sido celebrado contrato de arrendamento, o Estado obrigava-se a pagar à Estamo uma indemnização mensal correspondente a 6,5%, sobre 12 meses, calculada sobre o preço do imóvel, actualizado anualmente, de acordo com o índice de preços no consumidor estabelecido pelo INE, até à sua entrega, livre e devoluta.

 

É caso para dizer: foram-se os anéis (os hospitais) e os dedos (os juros de indemnização) com eles.

 

E qual tem sido o papel da Câmara Municipal de Lisboa (CML) em todo este processo? Primeiro deveras interessadíssima, embora hoje bem mais na expectativa, pois apenas quando pressionada pelos debates públicos e o reiterado protesto de cidadãos e profissionais da saúde, pareceu despertar da sua letargia.

 

Recordemos que os citados Orçamentos de Estado até atribuíam «aos municípios da localização dos imóveis, o direito de preferência nas alienações realizadas através de hasta pública», ou seja, receitas complementares para a CML.

 

No entanto, não nos podemos esquecer que foi a própria vereação PS quem, logo em Abril de 2009, promoveu a divulgação dos projectos da Sagestamo, datados de Novembro de 2007, para os «Terrenos, Hospitais e Instalações Militares com desafectação prevista em Lisboa».

 

E seria também a própria CML, antevendo futuras receitas, fruto dos projectos imobiliários e de novas taxas de IMI, quem acabaria por promover vários loteamentos para a Colina de Santana. A CML via ali «o interesse excepcional destes projectos e as mais-valias» que poderiam trazer para a cidade, pelo que procedeu à publicitação dos Pedidos de Informação Prévia (PIPs) e sua discussão em Julho de 2013.

 

De imediato surgiram (em Julho de 2013) projectos e maquetas, quando a Estamo, em conjunto com o representante da CML e os arquitectos responsáveis dos vários projectos apresentaram, em sessão pública na Ordem dos Arquitectos, os referidos projectos de arquitectura correspondentes aos quatro PIPs, para aferir a viabilidade da realização das operações de loteamento.

 

O projecto urbano previa a conversão dos quatro hospitais em espaços com valências hoteleiras, de habitação, comércio, estacionamento e lazer. O valor estimado do investimento para realizar o projecto com novas construções, reabilitação e arranjos exteriores estava avaliado, no mínimo, em 250 milhões de euros.

 

Este projecto deixa a Saúde do centro de Lisboa sujeita a um genuíno processo de despejo. A alternativa oferecida pelo Governo é a transferência destas unidades, com a perda de mais de 900 camas, para um novo hospital em Chelas, caso venha a ser construído, com custos previstos superiores a 600 milhões de euros.

 

E eis senão quando o sr. vereador do Urbanismo (Manuel Salgado) anunciou que os PIPs estavam suspensos até ser aprovado um Programa de Salvaguarda e Regeneração Urbana, envolvendo a CML, a Estamo e a Universidade de Lisboa. E o então sr. presidente da CML (e actual primeiro-ministro, António Costa) afirmava que o fecho de hospitais na Colina de Santana era uma «oportunidade de regeneração», leia-se, de negócio.

 

Afinal, de que lado tem estado a CML? É urgente que o Município e o Governo reconsiderem e revejam os projectos no respeito pelas valências que hoje ameaçam destruir, revertendo todo o processo.

 

A Assembleia Municipal de Lisboa ainda promoveu, no início de 2014, um debate temático em quatro sessões e até criou uma Comissão de Acompanhamento da Colina de Santana, que desde há exactamente dois anos deixou inexplicavelmente de reunir.

 

A concretização destes projectos urbanos constituirá essencialmente uma oportunidade de negócio financeiro para o Governo, os privados e a CML. Para os cidadãos surge como inevitável a salvaguarda e o respeito pelas unidades histórico-artísticas e a componente de saúde, que devem prevalecer acima dos interesses especulativos e de acções de pretensa modernização urbanística.

 

Ao longo de todo este processo, constata-se que para os governos do PS, PSD e CDS os números têm sido apenas um «fim». Para os cidadãos significaria o «fim da linha» no direito pelo acesso à saúde consignada na Constituição da República Portuguesa.

 

Os munícipes, os utentes e os trabalhadores não querem o projecto da Estamo para a Colina de Santana; não querem nem precisam de mais especulação imobiliária; os cidadãos exigem e lutam pelo SNS e por melhores cuidados de saúde.

 

 

 

J. L. Sobreda Antunes

(eleito na Assembleia Municipal de Lisboa)