«O primeiro emprego aconteceu depois de completar os seis anos (…) necessário se torna esclarecer que no respeitante à idade não bati qualquer recorde, pois houve crianças e não foram poucas, que começaram antes dos seis anos (…) Os aprendizes, regra geral, entravam numa ‘obragem’ (equipa de trabalho) pelo último escalão, que consistia em preparar o molde para que cada peça pudesse ser moldada ou a ‘levar para cima’ (…) ‘levar a cima’ era fazer uma corrida de oito horas, só interrompida por escassos minutos para comer uma bucha que nem sempre havia (…) Por vezes eles caiam redondamente no chão, esgotados pelo cansaço e vencidos pelo sono. Quando tal acontecia, acordá-los exigia no mínimo, uns fortes safanões que nem sempre resultavam, ou atirar-lhes com água fria para cima o que também não era infalível. O que nunca falhava porém era um toque na pele com vidro escaldante.»

(Joaquim Gomes, Estórias e Emoções de uma Vida de Luta, pp. 26-28)

 

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Comemorações do 18 de Janeiro, Marinha Grande

Canteiros de flores rodeavam os pessegueiros, uma fileira de couves murava o começo do quintal. Ao fundo, uma capoeira e duas ou três coelheiras de onde roubavam coelhos acabados de nascer. A laranjeira dava sombra ao Tico e o longo corredor de vinhas dava sombra às crianças. Da cameleira junto ao poço arrancavam as camélias mais vistosas para decorar as iguarias de areia e terra que as ocupavam ao entardecer. Antes das ameixas vinham as flores, muito miudinhas na Primavera, indicadas para os pratos mais delicados do restaurante que improvisavam no tanque. Na cozinha de verdade, Júlia preparava sonhos para o lanche. Fazia as delicias da família mas pouco habituada a elogios logo respondia: ó filha, mas isto é só farinha e água, frita-se e passa-se no açúcar, não tem nada que saber. Engenho adquirido na criação de sete filhos, seis raparigas, um rapaz, uma panela de sopa e uma sardinha para três.

Mal sabe ler mas esmera-se na caligrafia quando é preciso assinar o papel da reforma mas ensinou aos netos as primeiras letras, as contas de mais e de menos. Convencia como só ela que tinham de ir à escola porque para muitos meninos de outros tempos terminar a 1.ª classe era uma sorte. A história era dela mas podia ser de uma geração inteira. A história dos meninos e meninas que cresceram ao ritmo da sirene da fábrica. Ao ritmo da aprendizagem do ofício que marcava a passagem do jovem aprendiz a operário. Ao ritmo da fome que obrigava pais a recusar os livros e os bancos da escola aos seus filhos que, sem tempo para serem meninos se faziam homens à boca dos fornos e às suas filhas que, sem tempo para serem meninas, se faziam mulheres empalhando garrafões de vidro.

A dez metros da sua casa, a do operário Carlos Pais. Aos netos já tinha dito que alguma coisa de importante se tinha passado na casa do vizinho. Mudava o tom de voz sempre que se falava no assunto. Todos os dias no regresso da escola, a neta passava pela casa que afinal tinha sido quartel general. Um muro de tijolo e respeito torvava-lhe a vista mas parecia modesta, pequena, caiada de branco a casa onde um grupo de homens valentes dirigiu o movimento de 18 de Janeiro de 1934.

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Casa de Carlos Pais

Foi na madrugada de 17 para 18 que operários comunistas, anarquistas e republicanos, animados pelas reivindicações de reabertura do sindicato, aumento dos salários, combate ao desemprego e exigência de autoridades locais e nacionais ao serviço da classe operária, convergiam numa greve insurreccional. Em poucas horas, os correios estavam tomados, a linha férrea obstruída, as linhas telefónicas cortadas e as estradas cobertas de obstáculos impedindo a passagem das forças repressivas. Em simultâneo, no posto da GNR prosseguia um intenso tiroteio e o contacto com o comando do posto na certeza de que o movimento seria já uma realidade à escala nacional. A vitória parecia certa. Contudo, enquanto o comité revolucionário reunia para deliberar sobre a nova situação soam as primeiras rajadas das metralhadoras das forças repressivas. Poucas horas depois, as tropas a cavalo percorriam as casas e o pinhal à procura dos revolucionários. A vila estava ocupada militarmente e multiplicavam-se os espancamentos arbitrários e os julgamentos sumários que determinavam pesadas penas de prisão. Dois anos depois, uma leva de 136 presos políticos inaugura o Campo da Morte Lenta no Tarrafal, dos quais 57 eram marinhenses na sua maioria participantes na greve de 18 de Janeiro.

Sou neta da Júlia que foi empalhadeira na Fábrica dos Guilhermes, que de costas curvadas vestida com um avental bem largo, segurava o garrafão entre os joelhos e as coxas, bem fincando na barriga enquanto empalhava. Da Júlia que continua em Casal Galego, ao lado da casa do Carlos Pais onde hoje é o Museu do 18 de Janeiro. Neta da Júlia e filha de uma terra de revolucionários, de gente séria que não se resigna, que se organiza e luta. Uma terra de gente tão solidária quanto critica, que à roda da mesa no café, no bar da colectividade, no banco do jardim, mas também nos locais de trabalho e espaços de decisão hoje, como no passado, se exalta contra as injustiças.

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Casa Museu 18 de Janeiro de 1934, Marinha Grande

Cumprem-se agora 83 anos da jornada heroica do proletariado vidreiro da Marinha Grande, cujas comemorações são, desde que conhecemos a liberdade, feitas com os vidreiros, com o seu sindicato e com o povo da Marinha Grande. A Junta de Freguesia da Marinha Grande (JFMG) consciente do papel das instituições na transmissão do legado histórico às gerações vindouras participou nas iniciativas promovidas pelo Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Vidreira (STIV), ao contrário da Câmara Municipal de presidência PS que, em vez disso, agendou um conjunto de iniciativas paralelas entre as quais uma conferência com o secretário geral da UGT que, ao que se sabe e os marinhenses não esquecem, nada teve a ver com o acto revolucionário de 1934.

Sou da terra dos que transformam a massa viscosa em obra de arte e que na luta transformam a própria vida e não daqueles que tentam roubar-nos a memória.

 

 

Diana Gregório

(Antropóloga)